Brasil

Ativista que defendia mulheres trans é morta

Por Paloma Vasconcelos

Ativista, que cuidava de alojamento para mulheres trans expulsas de casa, foi esfaqueada; universidade lamentou ‘a dizimação da população trans’

Verônica foi a madrinha da quinta edição da Parada LGBT Alternativa
(Facebook/Reprodução)

A dor de perder uma mãe. É assim que muitos amigos e pessoas próximas de Verônica de Oliveira, 40 anos, explicam a saudade que já sentem da ativista em dezenas de homenagens nas redes sociais.

Mãe Loira“, como era conhecida, Verônica foi assassinada na madrugada da última quinta-feira (12/12), na esquina das avenidas Presidente Vargas e Borges de Medeiros, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, cidade a 291 km da capital Porto Alegre. Ela, que não tinha por hábito mais fazer programas, na noite do crime decidiu ir e acabou morta com uma facada na barriga.

Segundo o delegado titular Gabriel Zanella, do DHPP (Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa), que ouviu testemunhas e amigas da vítima, o agressor ofereceu R$ 50 para que as profissionais de sexo fizessem programa com ele, mas elas recusaram, acarretando uma discussão. Verônica então se aproximou do carro e o agressor desferiu a facada. Ele se apresentou espontaneamente na delegacia no sábado (14/12) e confessou o crime.

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Verônica era uma liderança trans na região (Facebook/Reprodução)

Verônica mantinha um alojamento para acolher mulheres trans e pessoas LGBT+ expulsas de casa ou em situação de vulnerabilidade desde 2006. Chamada de Verônica Alojamento, a casa, localizada no Bairro Urlândia, é um dos poucos espaços acolhimento para transexuais do Brasil.

Bruna Gloria, 28 anos, que também trabalha como profissional do sexo, é uma das 10 mulheres trans que atualmente moram na casa de acolhida. Há 4 anos é ali que ela encontrou um lar. Perder Verônica, para Bruna, é perder uma mãe.

“Todas as manhãs quando eu acordava ela estava aqui e ficávamos conversando. A gente sente muita falta. Ela era uma pessoa muito pobre e depois começou a ajudar todo mundo. Ela era um exemplo. A gente sabe o quanto ela vai fazer falta, porque era uma mãe. Como eu vou ficar aqui sem ela? Parece que hoje caiu a minha ficha. Eu não me sinto mais segura de estar aqui. Ela dava muito conselho, ela falava pra gente comprar um carro, comprar nossa casa”, relembra Bruna.

Bruna explica como funcionava a dinâmica da casa com a presença de Verônica. “Aqui no alojamento ela colocava regras: ninguém podia usar drogas, por exemplo. Ela acolhia a gente em todos os momentos. Ela conhece muita gente, então tinha muito respeito de todos”, conta.

“Para as gurias novinhas que queriam ir para a rua [trabalhar como prostituta], ela dizia para irem estudar para conseguir outra oportunidade de trabalho, porque a rua é uma ilusão, a gente corre riscos. Ela pegava no meu pé até quando eu bebia demais, falava pra eu fazer meu pezinho de meia, me puxava para cima”, explica Bruna, emocionada.

Quem também relembra de Verônica é Kamilly Hoffman, 31 anos. Kamilly e Verônica se conheciam há 15 anos, desde que Kamilly foi expulsa de casa e acolhida por Verônica.

“Dividíamos aluguel e apartamento na época. Ela sempre me incentivou a ir atrás das minhas coisas. Ela queria que eu tivesse as minhas coisas, mas nunca me incentivou a trabalhar na rua, porque sempre tem um perigo”, relembra Kamilly, que trabalha como profissional do sexo.

“Morei fora novamente e quando voltei já tinha o dinheiro para ter a minha casa, Verônica sempre me incentivou a isso. Foi quando eu construí a minha casa no terreno da minha mãe, onde eu resido hoje. Eu moro a duas quadras aqui do alojamento, então venho aqui todos os dias. Onde eu tinha que ir, eu ia com ela”, recorda Hoffman.

No começo, conta Kamilly, Verônica enfrentou dificuldades nas ruas, pois as outras meninas trans não aceitavam que ela ficasse naquele ponto. Mas, com carisma, ela conquistou todas e se tornou uma das figuras mais queridas do local.

“Ela foi conquistando o espaço dela com muita humildade e todo mundo passou a respeitar ela. Anos depois ela abriu essa casa de acolhida para mulheres trans de todo o Brasil e LGBT+ que precisavam”, explica Kamilly.

Hoffman conta que estava com Verônica na madrugada em que tudo aconteceu. “Ficamos sentadas e conversando. Até que uma amiga minha me chamou para ir comprar cigarro, por volta das 3h da manhã. Saímos de carro um pouco depois e quando eu passei de carro vi ela conversando com esse rapaz. Ficamos menos de 5 minutos lá no posto e quando eu voltei ela já estava estirada no chão, com a facada”.

Kamilly e as outras meninas ficaram sem saber o que fazer, se socorriam Verônica ou chamavam uma ambulância. Foram pelo menos cinco ligações até o atendimento acontecer. Só depois de meia hora, a ambulância chegou.

“Quando ela chegou no pronto-atendimento, que é mais perto, cerca de 8 minutos do local onde estávamos, ela estava com vida. Lá ela foi atendida por uma equipe de pelo menos 20 pessoas. Ela foi entubada e avisaram a gente que o estado era grave e que seria necessário transferir ela para o Hospital Universitário de Santa Maria”, descreve.

Verônica chegou com vida ao hospital, mas não resistiu ao ferimentos. “Ela não costumava trabalhar na rua, mas naquele dia ela decidiu ir e aconteceu tudo isso para ela”, desabafa Kamilly.

A amiga relembra do trabalho voluntário que a ativista mantinha na comunidade em datas comemorativas. “Eu sempre ia com ela entregar os brinquedos no Natal e no Dia das Crianças. Ela sempre arrecadava brinquedos e material escolar para as crianças, pois moramos em um bairro que é pobre. Quando ela chegava de carro vinha todo mundo gritando ‘a tia Verônica!’”.

Em primeiro de dezembro desse ano, Verônica foi homenageada na Parada LGBT Alternativa da cidade, que é organizada por movimentos sociais e não tem apoio governamental. O Coletivo Voe é o responsável pela realização do evento há 5 anos. O grupo é formado por estudantes, pesquisadores e ativistas da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) que lutam pela defesa da diversidade sexual e de gênero, promovendo espaços de formação sobre gênero, corpo e sexualidades.

Em entrevista à Ponte, Carolina Bonoto, 29 anos, integrante do coletivo, conta que o grupo escolheu coroar Verônica como madrinha da 5ª Parada LGBT Alternativa, que teve como tema “Que bom te ver viva”. O evento aconteceu em 1º de dezembro em agradecimento ao trabalho feito pela ativista.

“Somos um coletivo que ainda é muito centrado na universidade, então ela nos aproximava muito das mulheres trans da cidade”, explica.

Carolina lembra que, na coroação do evento que aconteceu em outubro, Verônica fez um discurso sobre a situação das mulheres trans que trabalham nas ruas da cidade. “Nessa fala, ela chamou a atenção justamente para a falta de segurança pública, de políticas públicas para as mulheres trans, que estão em situação de vulnerabilidade. E o próprio medo de ter assalto e agressão e quando elas chamavam a polícia não resolvia. Então a fala dela foi nesse sentido muito para abrir os olhos para o próprio movimento LGBT de Santa Maria”.

Contra a ‘dizimação da população trans’

A UFSM lançou uma nota de pesar e de repúdio ao assassinato de Verônica de Oliveira. “Verônica era uma referência na militância LGBTQIA+ na cidade de Santa Maria, além de administrar um alojamento para mulheres trans na mesma cidade, oferecendo acolhimento a uma população cujas vidas são marcadas pela resistência diária à transfobia”, diz trecho da nota.

O texto lembra os outros dois assassinatos na cidade, de Carolline Dias e de Nemer da Silva Rodrigues, e pontua que as mortes “revelam a realidade do transfeminicídio, a dizimação da população trans como resultado direto da transfobia”

“Em tempos nos quais o discurso de ódio está autorizado e reproduzido em posicionamentos públicos irresponsáveis em nosso país, faz-se necessário o envolvimento direto das autoridades em todas as iniciativas necessárias à promoção dos direitos humanos, ao respeito à diversidade e ao combate implacável à violência de gênero, em todas as suas formas”, finaliza integrantes do curso de extensão de estudos de gênero em nota.

Delegado descarta transfobia

Em entrevista à Ponte, o delegado Gabriel Zanella afirmou que não acredita que o crime, assim como outros dois assassinatos de mulheres trans cometidos na cidade em 2019, seja motivado por transfobia ou ódio.

Uma das vítimas, morta em setembro, é Carolline Dias, 27 anos, transexual que morava na casa de acolhida de Verônica. Ela foi morta com um tiro nas costas na esquina das avenidas Presidente Vargas e Borges de Medeiros, mesmo local em que a Mãe Loira foi morta.

“O crime aconteceu no contexto de uma discussão cujo objeto de discussão era uma tratativa de programa sexual. O agressor chega no local de automóvel, oferece determinada quantia em dinheiro a Verônica, ela e as demais não aceitaram o valor acertado, se inicia uma discussão acirrada com xingamentos múltiplos entre o agressor e Verônica”, conta.

“Em determinado momento, o agressor vai até o automóvel e retira uma arma branca, uma faca, e não por acaso ele começa a mudar o comportamento, para de xingar e para aquela postura revoltada. Quando ele inicia a saída com o automóvel, ele desfere um golpe de faca no abdômen da vítima. Ela foi socorrida, mas infelizmente veio a falecer”, completa Zanella.

O delegado, que não quis informar a identidade do suspeito, contou que o agressor confessou o crime no último sábado (14/12) e alegou legítima defesa. Imediatamente, a Polícia Civil solicitou a prisão temporária do homem de 28 anos.

“Hoje estamos encaminhando a representação da conversão da prisão temporária para a prisão preventiva. O crime seguirá como homicídio qualificado por motivo fútil. Ele usou a covardia, o elemento surpresa para golpear a vítima. Por enquanto, não vamos divulgar o nome dele”, declara o delegado.

A ativista Carolina Bonoto, do Coletivo Voe, discorda da visão do delegado de descartar a transfobia na morte de Verônica. Para ela, o assassinato de mulheres trans em situação de prostituição deve, sim, ser encarado como transfobia.

“A tecla que a gente bate é na transfobia enquanto questão estrutural, em que a mulher trans é colocada em um papel que expõe ela a essa vulnerabilidade, por uma falta de inserção no mercado de trabalho, uma resistência de pessoas verem as mulheres trans à luz do dia”, argumenta Bonoto.

“Muitas meninas que eu conheço não se sentem confortáveis de ir para o centro durante o dia, porque elas sabem que vão olhar, buzinar, seguir elas quando entram em lojas. Ainda vivemos em uma sociedade que não entende esses corpos como merecedores de estar nesses locais”, continua.

Por conta de tudo isso, a ativista explica que muitas trans encontram dificuldades em ter um emprego no mercado formal, acabam fazendo programa nas ruas e se expõem a uma série de riscos. “Tudo isso é transfobia, elas não terem acesso a outros empregos, a outras formas de rendas”, completa.

Carolina afirma que o Coletivo Voe já tentou realizar diversos eventos para conscientizar os delegados e delegadas de Santa Maria sobre o uso da palavra transfobia. “Eles ainda têm resistência para usar o termo, é como se a pessoa precisasse gritar enquanto atira que odeia pessoas trans para que isso seja transfobia”, critica.

*Esta reportagem foi publicada originalmente pela Ponte.

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