
A opinião do vice-presidente Hamilton Mourão sobre o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais notórios torturadores da ditadura, provocou uma onda de repúdio entre atores do meio político e jurídico do Brasil, até mesmo entre antigas vítimas do militar.
Em entrevista exclusiva ao programa Conflict Zone, da Deutsche Welle (DW) nesta semana, Mourão classificou Ustra como um “homem de honra e que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”, após uma pergunta do entrevistador Tim Sebastian sobre a postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à trajetória do coronel.
Mourão afirmou que não está “alinhado com a tortura” e sugeriu que há uma interpretação distorcida do período militar e sobre o papel de Ustra e que seria melhor “que esperar que todos esses atores desapareçam para que a história faça sua parte”.
“Ustra (…) foi meu comandante no final dos anos 70 do século passado, e era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados. Então, muitas das coisas que as pessoas falam dele, eu posso te contar, porque eu tinha uma amizade muito próxima com esse homem, isso não é verdade”.
Em 2008, o coronel Ustra se tornou o primeiro oficial do regime a ser condenado por sequestro e tortura. Levantamento do Projeto Nunca Mais aponta que ele foi responsável por pelo menos 500 casos de tortura quando comandou o Doi-Codi entre 1970 e 1974. Já a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos relacionou o coronel com pelo menos 60 casos de mortes e desaparecimentos em São Paulo. Ustra morreu em 2015, aos 83 anos, sem nunca ter cumprido um dia na prisão.
As falas de Mourão à DW foram criticadas pelo presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, que teve o próprio pai assassinado por agentes do regime militar em 1974. Ele acusou o vice-presidente de “não se importar” com a tortura.
Não pairam dúvidas sobre o cometimento do crime de tortura pelo coronel Ustra. Quando alguém lhe presta homenagens, como o fez o vice-presidente Mourão, a pessoa não está negando que ele tenha torturado seres humanos, está apenas revelando que não se importa com isso.
— Felipe Santa Cruz (@felipeoabrj) October 9, 2020
O vereador paulistano Gilberto Natalini (PV), que foi torturado por Ustra nas dependências do Doi-Codi nos anos 1970, também repudiou a fala de Mourão. “Ustra foi um torturador cruel e facínora. Sou testemunha pessoal disso. Fui torturado pessoalmente por ele”, escreveu no Twitter. A publicação de Natalini acabou atraindo ataques de defensores do coronel na rede, o que levou o vereador a escrever: “Adoradores dos torturadores e da tortura são pessoas que abandonaram a raça humana. Defendem monstruosidades.”
Ustra foi um torturador cruel e fascínora. Sou testemunha pessoal disso. Fui torturado pessoalmente por ele.
— Gilberto Natalini (@gnatalini) October 8, 2020
O Instituto Vladimir Herzog e a Conectas Direitos Humanos divulgaram nota para repudiar a fala do vice. “É inaceitável que o vice-presidente da República lance mão de uma tentativa de revisionismo histórico absurda como esta, que busca reescrever a biografia de um dos mais cruéis e abomináveis personagens da história do nosso país.”
O Instituto @vladimirherzog e a Conectas repudiam a declaração do general Hamilton Mourão, que elogiou o coronel Brilhante Ustra, chamando-o de “homem de honra”, negou as críticas que são feitas ao torturador e afirmou que ele respeitaria os direitos humanos.
— Conectas (@conectas) October 9, 2020
A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, por sua vez, publicou uma carta de repúdio
“Ao proferir tais elogios, Hamilton Mourão conspurca, de saída, a honra dos militares brasileiros. Ao fazê-lo na condição de vice-presidente, constrange a Nação e desrespeita a memória dos que tombaram sob Ustra. E, ao insistir em reverenciar o carrasco, fere mais uma vez o decoro do cargo em que foi investido sob juramento de respeitar a Constituição. É ela que nos ensina: ‘Tortura é crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia”.
A nota foi assinada pela presidente de honra da Comissão Arns, Margarida Genevois; o presidente da Comissão Arns, e ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), José Carlos Dias; e o ex-presidente e fundador da Comissão Arns, também ex-coordenador da CNV, Paulo Sergio Pinheiro.
Os deputados fluminenses Marcelo Freixo (PSOL) e Alessandro Molon (PSB) também criticaram a fala de Mourão. Assim como os deputados paulistas Sâmia Bomfim (PSOL) e Ivan Valente (PSOL). “Declaração repugnante, asquerosa e criminosa”, escreveu Molon no Twitter.
Defender torturador é compactuar com a tortura. É um escárnio o vice Mourão dizer que Brilhante Ustra era um homem de honra e que defendia os Direitos Humanos. Ustra foi TORTURADOR! O 1º militar condenado pela Justiça pelo CRIME de TORTURA na ditadura! É isso que ele é!
— Marcelo Freixo (@MarceloFreixo) October 9, 2020
Mourão é um cínico e covarde! É nojento ver o vice-presidente da República afirmar que o torturador e assassino, Brilhante Ustra, era um "homem de honra" e "alguém que respeitava os direitos humanos". Em qualquer país sério, isso seria um escândalo e motivo para impedimento!
— Ivan Valente (@IvanValente) October 9, 2020
O mesmo ocorreu com o candidato à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL) e sua vice na chapa, Luiza Erundina. Boulos afirmou que “Não há honra em colocar ratos no corpo de mulheres e torturar grávidas, há apenas maldade e perversão”. Já Erundina disse que o vice-presidente é “conivente com a barbárie que foi a tortura”.
O vice-presidente Mourão defendeu o torturador Ustra e disse que era um "homem de honra." Não há honra em colocar ratos no corpo de mulheres e torturar grávidas, há apenas maldade e perversão. Ustra é a lata de lixo da história do Brasil e Bolsonaro e Mourão serão também.
— Guilherme Boulos (@GuilhermeBoulos) October 9, 2020
Manuela d’Ávila (PCdoB), que disputou a eleição presidencial de 2018 como vice de Fernando Haddad, disse que a fala de Mourão é uma “afronta a todas as vítimas que a ditadura deixou”. Outros deputados que manifestaram repúdio contra a fala de Mourão incluem Erika Kokay (PT-DF), Nilto Tatto (PT-SP). O ex-deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) e o ex-ministro Carlos Minc também criticaram a fala de Mourão.
Elogios passados
Essa não é a primeira vez que Mourão protagoniza uma controvérsia envolvendo Ustra. Em 2015, quando ocupava a cheia do Comando Militar do Sul, durante o governo Dilma Rousseff, ele perdeu o posto após permitir que suas tropas organizem uma homenagem ao coronel, que havia morrido naquele ano. Ele acabou sendo deslocado para um posto menor em Brasília. Em 2018, durante uma cerimônia que marcou sua passagem para a reserva, Mourão chamou Ustra de “herói” que “combateu o terrorismo e a guerrilha”.
É uma posição alinhada com a de Bolsonaro. Em 2016, durante a votação para abertura do processo de impeachment de Dilma, Bolsonaro, então um deputado, mencionou o coronel durante seu voto. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.
Em 2019, já como presidente, Bolsonaro se encontrou duas vezes com a viúva de Ustra. Ele também já recomendou repetidas vezes que o público leia o livro de memórias do coronel A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça.