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Relatório aponta 79 presos desaparecidos após rebeliões em 2017

(Arquivo/Agência Brasil)

Mais de um ano e meio depois das rebeliões de janeiro do ano passado na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, e na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, ainda é desconhecido o paradeiro de 79 presos. A informação consta de um relatório entregue na semana passada ao Ministério dos Direitos Humanos pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

Após visitas de monitoramento às unidades onde ocorreram as rebeliões, os autores do relatório ressaltaram a possibilidade de essas pessoas terem sido vítimas de desaparecimento forçado em contexto de ação ou omissão de autoridades públicas responsáveis pela custódia ou pela segurança das unidades prisionais.

“Os casos envolvem desde a omissão criminosa do Estado – ao não exercer sua obrigação de empreender investigação e busca de corpos – até suspeitas fundadas em fortes indícios de práticas de homicídio envolvendo agentes públicos, passando inclusive pela ocultação de cadáveres”, diz o estudo.

O perito José de Ribamar de Araújo e Silva, que participou das visitas às duas penitenciárias, diz que “há descontrole de informações” e que os estados de Rondônia e Roraima devem explicações sobre a localização dessas pessoas. “Esse descontrole faz com que nós, pareando a informação das pessoas presas, aquelas que foram efetivamente mortas e periciadas e aquelas que deveriam ser identificadas pelo estado como presas nessas unidades, finalizamos o relatório apontando a existência de desaparecimento forçado”, afirma Ribamar.

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Na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, onde 33 detentos morreram na rebelião, a administração não consegue identificar oito pessoas que deveriam estar privadas de liberdade na unidade. “Os orgãos públicos desconhecem se esses indivíduos estão mortos ou foragidos. Esse cenário enseja enorme preocupação, podendo, inclusive, ser identificado como casos de desaparecimentos forçados”, diz o texto.

Em Alcaçuz, onde a rebelião resultou na morte de 26 pessoas, há 71 detentos que constam estar na unidade, mas não foram encontrados durante a visita de monitoramento feita pelo MNPCT.

“As notícias iniciais tratavam de mais de 100 mortes dentro de Alcaçuz, mas oficialmente foram comprovadas 26 dentro da penitenciária. Porém, esse número pode vir a ser maior, porque não existe um número oficial de pessoas desaparecidas. (…) é possível que o número de mortes se aproxime da estimativa inicial, ou seja, 90 mortos, dos quais 64 desaparecidos mais 26 mortos confirmados. A equipe do MNPCT obteve informações de que (…) dentro da penitenciária havia uma fábrica de bola onde corpos podem ter sido incinerados, assim como pode haver corpos enterrados em valas improvisadas e nas fossas sépticas”, diz o relatório.

Busca de respostas

Em alguns casos, os peritos do órgão de fiscalização e prevenção à tortura foram informados de que os presos fugiram e, em outros, que foram transferidos. “Se estão foragidos, que comprovação nós temos? Se foram mortos, onde estão os corpos? O Estado tem a custódia das pessoas e não sabe dizer onde estão, tem que dar essa resposta aos familiares e a toda sociedade”, questiona o perito.

Ribamar diz que entre os mortos havia pelo menos um preso provisório e um que já havia cumprido a pena. Para ele, o fenômeno do desaparecimento forçado emergiu no sistema penitenciário com o que classifica de “falência múltipla dos órgãos de fiscalização”.

“As chacinas que aconteceram naqueles estados provaram que o estrangulamento do sistema de perícia faz com que a perícia não dê conta desses casos”, afirma.

Ao receber o relatório, o secretário nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, Herbert Barros,r essaltou a necessidade de fortalecer a perícia independente nos estados. “É necessário que busquemos juntos, o governo federal apoiando os estados naquilo que for possível, a estruturação de mecanismos, com peritos independentes nos seus posicionamentos e peritos que tenham a sustentabilidade garantida para seus trabalhos.”

De acordo com o relatório, as rebeliões de janeiro de 2017 em Alcaçuz e Monte Cristo e no Complexo Prisional Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, foram acompanhadas de respostas reativas no plano institucional. “Nem sempre as mais adequadas, uma vez que não revelaram sustentabilidade em longo prazo, nem efetiva reversão das causas da violência ou melhoria dos indicadores de garantias de direitos das pessoas presas, familiares e trabalhadores”, ressalta o documento.

Este foi o terceiro relatório apresentado pelo MNPCT, que iniciou suas atividades de fiscalização em 2015. Segundo Ribamar, o primeiro relatório do órgão, que visitou o Compaj em 2015, já prenunciava o que veio a ocorrer em 2017. “Ali estava uma combinação de fatores explosivos, e o diagnóstico que o Mecanismo fez, infelizmente, veio a se confirmar, porque as recomendações fundamentais feitas no relatório não tiveram efetividade. Este é o nosso grande desafio.”

O tema dos desaparecimentos forçados será alvo de um novo relatório do Mecanismo, com divulgação prevista para o início de setembro.

Tortura

O relatório conclui que a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, “mais do que práticas reiteradas, fazem parte do repertório regular de atuação das instituições de privação de liberdade do país”.

Composto por 11 peritos com prerrogativa de inspecionar e monitorar a situação de pessoas presas, o Mecanismo visitou 48 instituições entre abril e dezembro de 2017. Foram realizadas missões de inspeção em instituições como prisões, asilos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e instituições do sistema socioeducativo nos estados do Rio Grande do Norte, Tocantins, de Roraima e Mato Grosso.

Recomendações

Nas missões de inspeção em estabelecimentos do sistema prisional, o mecanismo propôs 481 recomendações, das quais 345 foram direcionadas a unidades de privação de liberdade ou internação. Desse total, 157 foram relacionadas ao âmbito prisional, 115 ao sistema socioeducativo e 53 a instituições com características asilares.

O relatório destaca a importância da fiscalização dos espaços prisionais pelos órgãos do sistema de justiça. As principais recomendações a esses órgãos são a aplicação efetiva de medidas cautelares diversas da prisão, das penas e medidas alternativas, bem como socioeducativas em meio aberto, de audiências de apresentação ou de custódia, revisão das internações compulsórias e fiscalização da liberação e execução do plano de aplicação das verbas oriundas do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen).

O Mecanismo foi criado em 2015, após o Brasil ratificar o Protocolo Facultativo à Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007. Ligado ao Executivo, mas com funcionamento independente, faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), criado em 2013 pela Lei 12.847.

O relatório lembra que a implementação do sistema é uma estratégia central no enfrentamento à tortura no país e enfatiza que a demora na adesão dos estados “é reveladora do baixo compromisso dos Poderes Executivo e Legislativo na transformação do atual estágio de coisas”. Até o momento, apenas Rio de Janeiro, Pernambuco e Tocantins instituíram Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura.

O secretário nacional de Cidadania diz que, para consolidar o sistema de combate à tortura no país, é necessário mais diálogo entre os órgãos do governo responsáveis pelo sistema penitenciário. “É preciso estreitar ainda mais laços com o Ministério da Segurança Pública, de um modo especial com o Departamento Penitenciário Nacional e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário, reforçar e envolver mais os órgãos vinculados ao ministério”, afirma.

O relatório do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura será tema de audiência pública na próxima quarta-feira (8) na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), é papel da comissão cobrar a implementação das recomendações expressas no documento. “Vamos sugerir que a comissão funcione como um observatório para que possamos, não apenas pontuar as violações, mas ter uma atenção especial sobre as recomendações”, antecipa.

(Leandro Melito/Agência Brasil)

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