São Paulo

Corregedoria diz que PM ‘desrespeita superiores’ ao propor polícia mais democrática

Martel Alexandre del Colle pode ser expulso da PM do Paraná após publicar artigos sobre a polícia; ‘tentativa de intimidação’, diz membro do Policiais Antifascismo 

Martel Alexandre del Colle e documento da Corregedoria que informou sobre processo administrativo discplinar| Foto: arquivo pessoal

A Corregedoria da Polícia Militar do Paraná afirma que o policial aposentado Martel Alexandre del Colle desrespeitou a corporação ao criticar, em “pelo menos 11 textos”, ações policiais e se posicionar politicamente. Conforme mostrou reportagem da Ponte do último dia 22, Martel responde a um processo administrativo disciplinar e corre risco de ser expulso da corporação.

Segundo a nota da Corregedoria, enviada mais de uma semana depois da abertura de processo contra Martel, as reflexões propostas pelo PM aposentado “desmerecem os militares estaduais como um todo bem como suas ações, além de infringir o Código de Ética e regulamento da Corporação, maculando o prestígio da Polícia Militar do Paraná perante a sociedade”. O órgão, contudo, não especificou que tipo de norma Martel estaria descumprindo. “Há imputações graves contra a Polícia Militar e autoridades civis constituídas. Os conteúdos incitam outros policiais militares a desrespeitarem seus superiores hierárquicos e cita ações criminosas como sendo padrão de comportamento em ações de Polícia Militar”, diz outro trecho da nota. Martel integra o movimento Policiais Antifascismo.

Os conteúdos que incomodaram a PM paranaense foram publicados no portal Justificando e no canal que Martel mantém no YouTube. Em um dos textos, por exemplo, o policial critica a PM por agir como uma polícia de governo. “Uma polícia de governo cria estratégias para controlar o povo e não teme usar a violência para conseguir tal objetivo. Uma polícia de governo vê o povo como um incômodo, como um inimigo, como uma ameaça”, sustenta em sua argumentação. Na época das eleições de 2018, Martel publicou um artigo que viralizou declarando abertamente que não votaria em Bolsonarojustamente por ser policial. 

Assim como o colega de movimento, o investigador Alexandre Félix Campos, do Policiais Antifascismo em São Paulo, também passa por situação semelhante desde que se tornou alvo de apuração interna da corporação por ter se manifestado contra Bolsonaro e por criticar ações da polícia. “Para um policial ser convocado, precisa existir uma acusação formal. Quando cheguei na Corregedoria, descobri que não havia apuração instaurada. Queriam saber quem organizou o movimento Policiais Antifascismo, se eu tinha participado da organização do ato #EleNão [contra o presidente eleito Jair Bolsonaro] em São Paulo”, disse na época.

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Segundo Alexandre, o processo na Corregedoria da Polícia Civil de SP ainda está aberto. “A dor que nós sentimos é uma dor muito profunda porque, pra mim, ser tratado como traidor é algo que dói muito”, disse em entrevista à Ponte. “A minha luta é o oposto disso, eu luto para que possamos construir uma polícia em que o policial seja bem tratado, seja respeitado nos seus direitos, que tenha condições de ter suas folgas, de ter a companhia da sua família sem precisar trabalhar 24 horas por dia para conseguir garantir o seu sustento”, prossegue.

Para ele, esses processos são uma forma seletiva de intimidação e censura que não atinge quem está no topo da hierarquia das corporações, como oficiais da PM e delegados de polícia que são, em maioria, “homens brancos, héteros, cis, nascidos numa classe um pouco mais abastada e que tiveram acesso a bons colégios e boas universidades”. 

“Os dirigentes continuam se manifestando, criticando o governo, criticando ações, tendo posturas que confrontam a lei que nos rege, mas nada contra eles é sequer instaurado para apuração. Enquanto pra mim, pro Martel, pra tantos outros policiais que somos das bases, qualquer expressão, que é um direito fundamental garantido pela nossa Constituição, quando nos manifestamos, nós somos imediatamente levados a condições de estresse extremo e com intenção de nos calar”, aponta Alexandre.

Para o advogado Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), o processo administrativo contra Martel, bem como os apontamentos da Corregedoria são absurdos e ferem o princípio de liberdade de expressão. “Esse direito de se manifestar livremente e tecer críticas a quem quer que seja, sem cometer crime contra a honra de alguém, é uma cláusula pétrea prevista na Constituição”, afirma. “Se existem essas normas do estado do Paraná, elas devem ser consideradas inconstitucionais inexoravelmente porque estão infringindo um ponto crucial da nossa Constituição Federal”.

Questionado se essas ações podem ter relação com a eleição de Bolsonaro, Leonardo é cauteloso. “Eu não consigo fazer uma analogia direta em relação ao histórico de atuação da corregedoria do Paraná, mas nós estamos vivendo efetivamente um recrudescimento do poder punitivo, no momento em que os autoritários de plantão estão mais à vontade para buscar transpor as barreiras da democracia e dos direitos e garantias individuais”, avalia.

O investigador aponta que apesar das “represálias”, é necessário dar continuidade às reivindicações e críticas às corporações para que a estrutura da polícia seja repensada pelos próprios policiais. “Nós estamos numa luta, não iremos nos calar, iremos caminhar cada vez mais firmes para mudar essa estrutura que mata o pobre, o preto, o periférico, aquele que não atende a uma normatividade, e mata pessoas que estão nesse espectro, estando dentro ou fora da polícia”, declara Alexandre.

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, através da assessoria de imprensa privada do órgão, a InPress, e questionou sobre o processo contra o investigador, mas a pasta não se manifestou até a publicação da reportagem.

Por Jeniffer Mendonça – Repórter da Ponte

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