São Paulo

Menina atingida no olho por PM aponta descaso em delegacia

Por Paulo Eduardo Dias

Gabriella Talhaferro e sua mãe registraram ocorrência em Guaianases, mas se revoltaram com perguntas do delegado: ‘sua filha sabia que ali é ponto de tráfico?’

Kelly faz curativo no olho esquerdo de Gabriella, cuidado repetido de hora em hora
(Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)


Vítima de um disparo de bala de borracha disparada por um PM que tirou a visão de seu olho esquerdo, Gabriella Talhaferro, 16 anos, e sua mãe Kelly Talhaferro, revelam ter tido problemas para registrar a ocorrência no 44ºDP (Guaianases), na zona leste da cidade de São Paulo. As duas são unânimes em apontar uma série de falhas durante às quase 6 horas que estiveram na delegacia, sem terem recebido atenção, mas apenas questionamentos por parte do delegado, conforme sustentam.

As duas estiveram na delegacia para registrar um B.O. (Boletim de Ocorrência) da violência sofrida no domingo (10/11) a poucos metros do local em que a jovem foi atingida. Ela estava em frente a uma adega na Estrada Itaquera Guaianases quando ferida pelo PM que, além de a agredir, negou prestar socorro e ainda riu da situação vivida pela garota. O documento confeccionado nesta quarta-feira (13/11) se enquadra em lesão corporal e abuso de autoridade. 

Segundo a manicure autônoma Kelly Talhaferro, de 32 anos, ela e sua filha não foram tratadas como vítimas pelo delegado Ronaldo Pastro Alves, que a todo instante, ainda de acordo com Kelly, fazia questionamentos que colocavam em xeque a versão narrada pela jovem.

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“Nós chegamos por volta das 11h30 na delegacia. Ficamos cerca de duas horas na rua, no local onde ocorreu o fato, depois retornamos para dentro. Eu conversei com o delegado, mas não foi uma conversa boa. Eu achei um absurdo as perguntas que ele fez. Entendo que ele precisa fazer, como ele mesmo disse, ‘eu não estou aqui para defender ninguém, eu preciso ouvir os dois lados’, mas não entendi alguns questionamentos”, conta Kelly.

Entre as indagações que causaram revolta em mãe e filha, que ainda precisa de cuidados médicos de hora em hora para curar o ferimento causado pelo disparo da polícia, foram as seguintes: “A adolescente não teria confrontado os policiais?” e “ela sabia que ali é um ponto conhecido de tráfico de drogas?”. As duas fizeram mãe e filha se revoltarem.

“O delegado perguntou ‘se eu tinha certeza’ do que houve com minha filha. Se a Gabriella não estava no meio da multidão. ‘Tem certeza que ela não ofereceu nenhum risco aos policiais?’, ‘como os policiais iam atingir ela se ela não estava fazendo nada?’ Eu me senti muito mal com essa situação”, confessa a mãe da garota, que ia a um baile funk naquele dia e local, mas uma ação da PM dispersou todos antes mesmo da festa começar.

“Ouvi ainda que onde ela estava é um ponto de tráfico de drogas. Entendi assim: como sua filha estava em um ponto de tráfico de drogas, o problema é dela. Eu respondi que, se ali é um ponto de tráfico e aqui do lado tem um batalhão, porque o ponto de tráfico não foi extinto?”, perguntou a mulher ao delegado, que respondeu afirmando que ela estava “exaltada”. 

A situação só aumentou a revolta de Kelly com o Estado. “A minha filha é vítima de uma polícia despreparada e nós temos que provar que ela está falando a verdade. Ou seja, enquanto o autor do crime está coçando, sem fazer nada, a gente tem que provar que ela está falando a verdade, provar que ela não ofereceu risco ao policial. Que risco uma adolescente de 16 anos ou um grupo de jovens vai oferecer para quatro policiais fortemente armados dentro de uma viatura?”, questiona.

Documentos sigilosos obtidos pela Ponte mostram que a Polícia Militar tem regras específicas para uso de bala de borracha, chamado dentro da corporação de “elastômero”. O PM tem que disparar a pelo menos 20 metros de distância do alvo, mirar em membros inferiores, ser um disparo “preciso” e deve ser contra um “agressor ativo, certo e específico”. O material classifica como “erro” usar arma de bala de borracha para dispersar manifestantes ou grupos. 

A jovem, que deve passar por uma nova consulta nesta quinta-feira (14/11) no setor de oftalmologia do Hospital São Paulo, na Vila Mariana, zona sul, distante cerca de 50 quilômetros de sua casa, disse já ter saído de sua residência descrente de uma boa recepção. “Eu já esperava essa situação de pouco caso. Eles nos trataram como qualquer uma. Eles não querem saber quem está de fora [das instituições policiais]”, lamenta-se Gabriella.

As duas mulheres estavam acompanhas do ativista de direitos humanos e organizador de bailes funk Darlan Mendes, que também criticou a postura dos policiais da delegacia, que divide muro com a 1ª Companhia do 28º Batalhão, unidade em que trabalham os policiais acusados pelo crime. 

“Permanecemos cerca de 6 horas sabendo que a Gabriella estava recém operada. Fomos também questionados pelo delegado porque não registramos o boletim antes, mas informamos que o primeiro momento mais importante era a saúde da vítima. Mesmo após a cirurgia tinha risco de infecção. Fizemos vários curativos dentro da sala do escrivão, no corredor da delegacia, no carro…”, afirma. Darlan também cita que, durante o depoimento, uma vez ou outra PMs iam sondar o que estava acontecendo.

A demora também fez com que o trio não conseguisse prestar queixa na Ouvidoria da Polícia, localizada na Bela Vista, ou na Corregedoria da Polícia Militar, na Luz, ambas localizadas na região central da capital paulista. Gabriella ainda terá que ser examinada por um médico do IML (Instituto Médico Legal) para que possa confirmar as lesões sofridas.

“É um absurdo a vítima ser marginalizada. Por isso muitas pessoas desistem de prestar queixa. Eu passei um dia inteiro para fazer um boletim de ocorrência. Eu preciso provar que minha filha ficou cega. Eu preciso provar que ela foi baleada pela polícia. Eu preciso provar que ela não fez nada que pudesse colocar em risco os policiais. É como se ela fosse criminosa. Isso é um absurdo”, critica Kelly.

A mãe, que afirmou que buscará por Justiça para sua filha e que tem recebido apoio de outras pessoas que ficaram cegas após serem baleadas por PMs, disse ter achado estranho o delegado Ronaldo Pastro Alves afirmar não ter conhecimento de outros casos semelhantes ao de Gabriella. “O delegado me disse que nunca tinha ouvido falar de algo assim. Eu retruquei: “como não?” Pesquisei e há dois anos um outro jovem ficou cego por um disparo de bala de borracha por um policial do mesmo batalhão”, revela.

Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, liderada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre as alegações de mãe e filha. A pasta explicou que Gabriella e sua mãe estiveram na delegacia e que “o registro demorou três horas, de acordo com o Sistema RDO (Registro Digital de Ocorrência)”. 

“A equipe realiza diligências em busca de imagens que auxiliem na apuração dos fatos. O Comando do 28º Batalhão Metropolitano instaurou procedimento apuratório para investigar as circunstâncias da ação”, diz a SSP, complementando que “denúncias sobre o atendimento realizado na delegacia podem ser formalizadas junto à Corregedoria da Polícia Civil, para devida apuração”.

*Esta reportagem foi publicada originalmente neste link: https://ponte.org/garota-baleada-pela-pm-aponta-descaso-em-delegacia/

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