GCM que atirou na nuca de adolescente é solto
Jordy Moura Silva foi atingido na nuca por Claudino Gonçalves; “atirou pelas nossas costas e a menos dois metros”, declarou irmão que ficou ferido
Três dias após ser preso em flagrante, o guarda municipal Claudino Gonçalves, acusado de balear e matar um adolescente negro de 15 anos, foi solto na noite desta quarta-feira (8/4). A Justiça de SP concedeu liberdade provisória ao agente de segurança. O crime ocorreu no último domingo (5/4) em Campinas, no interior de São Paulo, quando, segundo testemunhas, a Guarda Civil usou viaturas e disparos de arma de fogo para dispersar um grupo de jovens que realizava manobras automobilísticas em um terreno desocupado nas obras do anel viário Magalhães Teixeira, no bairro Reforma Agrária, periferia da cidade.
O estudante Jordy Moura Silva foi baleado quando estava na garupa da motocicleta pilotada pelo irmão mais velho, Caique Moura Santos, 26 anos, que foi atingido de raspão pelo mesmo disparo que matou o adolescente. Aluno do 8º ano na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Oziel Alves Pereira, Jordy trabalhava com o pai em uma oficina de motos da família.
De acordo com o boletim de ocorrência, o colega de Claudino, Anderson Ricardo Coelho, afirmou que a guarda foi chamada para atender uma ocorrência “sobre indivíduos que, de moto, estariam realizando arruaças pelo local” e que acreditava-se que algumas motos poderiam ser roubadas.
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Testemunhas ouvidas pela Ponte relatam que, por volta das 10h do domingo, os guardas municipais Claudino Gonçalves e Anderson Coelho chegaram de viatura efetuando disparos para o alto, ação que gerou pânico e correria. Ainda, segundo testemunhas, Claudino passou a perseguir a moto em que estavam os irmãos Moura e atirar contra eles. Um dos disparos atingiu fatalmente a nuca de Jordy e feriu de raspão o ombro de Caique, segundo ele próprio contou à reportagem.
“Contra mim, ele disparou primeiro uma vez no sentido do meu peito, mas não pegou, porque eu desviei com a moto. Foi quando eu parei que o último tiro atingiu o pescoço do meu irmão e me pegou de raspão. Tudo pelas nossas costas e a menos de dois metros da gente”, relata.
Ainda de acordo com Caique, antes de entrar no terreno, o grupo de motociclistas pediu autorização a um segurança local que fiscalizava as máquinas das obras na rodovia. “Ele deixou que a gente brincasse com as motos ali. A gente foi pra lá porque sabemos que é fechado, sem fluxo de veículos e pessoas, para não ficar empinando [as motos] na rua, pra não correr risco de atropelar e machucar ninguém”, explica.
Questionada sobre a ação da Guarda Municipal (GM), a Secretaria Municipal de Segurança Pública de Campinas, informou apenas que, na data do ocorrido uma viatura havia “atendido a uma ocorrência sobre aglomeração de pessoas no bairro” e que “a Corregedoria já abriu sindicância para apurar o caso e está acompanhando a investigação da Polícia Civil”.
A pasta subordinada à prefeitura informou ainda que “a arma de fogo do guarda municipal foi recolhida no ato da ocorrência” e que a Corregedoria da GM de Campinas solicitou o afastamento de Claudino das funções na corporação, pelo período que correrem as investigações. Mesmo afastado, Claudino segue recebendo seus rendimentos.
Também procurada, a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) afirmou, em nota, que o caso é investigado por um IP (Inquérito Policial) instaurado pelo 9º DP (Vila Aeroporto) de Campinas. A pasta informa ainda que “laudos de corpo delito e perícia no local foram solicitados e estão em elaboração” e que a conduta dos demais GCMs envolvidos na ocorrência será apurada, se referindo a Anderson e os outros dois guardas, Antonio Querino da Silva e Naum Venceslau de Brito, presentes durante a ação.
O que dizem as testemunhas
A Ponte teve acesso ao inquérito do caso, que traz o depoimento de seis testemunhas. Entre elas, está o inspetor da GM Edilson da Silva, que compareceu ao local da ocorrência após ser informado pelo Cecom (Centro de Controle e Comando) sobre a presença de “vários motoqueiros” na região. Ao chegar, afirmou ter avistado a viatura de Anderson e Claudino dentro da área de obras, “ao lado de uma motocicleta caída, com dois indivíduos no solo, um abraçado ao outro, com vários populares em volta, xingando e ofendendo a guarnição”. Silva confirma que as pessoas pediam para que os jovens fossem socorridos.
Segundo o depoimento, “em determinado momento, [o guarda municipal] Claudino passou a não se sentir bem, sendo então socorrido ao hospital”. O inspetor conta, ainda, que tomou conhecimento da ocorrência por Anderson, que contou a ele que um dos jovens do grupo teria apontado uma arma contra a guarnição. Nesse momento, ainda de acordo com o inspetor, o guarda conta ter disparado duas vezes na direção do suposto atirador. Na sequência, disse que outro disparo contra a viatura partiu do “garupa de uma das motos”, o que teria justificado o “revide” de Claudino que resultou na morte do adolescente Jordy.
As outras cinco testemunhas, no entanto, rebatem a versão do inspetor e o Inquérito Policial não aponta indícios de que os jovens estavam armados. Nos autos, uma moradora do bairro relata que “visualizou, claramente, o momento em que a viatura da guarda municipal emparelhou ao lado da motocicleta, em distância de aproximadamente dois metros, ouviu um disparo de arma de fogo e viu os ocupantes da moto caindo ao solo”.
A testemunha é uma enfermeira e afirma que estava a cerca de cinquenta metros “dos fatos narrados”, quando começou a gritar que “eles [guardas] haviam matado o menino”. Segundo ela, caso o socorro tivesse chegado logo, o adolescente poderia estar vivo. “Foi uma cena muito forte, parecia coisa de filme. O irmão dele estava desesperado, até tentava pegar ele no colo, mas os guardas não deixavam”, segue o relato. Imagens mostram o desespero de testemunhas buscando socorro e a voz de Caique, irmão de Jordy, bastante revoltado com a ação.
Um vídeo divulgado no Facebook mostra o momento em que um dos guardas intimida testemunhas que filmavam a chegada da GM no local. “Quem começar a dar ‘novidade’, vai preso”, grita um dos guarda, ao ser confrontado com a fala de um dos moradores defendendo a vítima. O agente retruca: “Criança?! Um vagabundo desses…Desliga esse celular.”
Uma das familiares da vítima, que preferiu não se identificar, afirmou à Ponteque, ao questionar a ação dos guardas, foi agredida fisicamente, detida, colocada em uma das viaturas e depois liberada no local. “Eles nos humilharam porque queriam jogar a culpa pra cima da gente. Além de ter tirado a vida do nosso menino, faz a família sofrer junto.”
Na tarde desta quinta-feira (9/4), foram apresentados à Secretaria Municipal de Segurança Pública de Campinas os relatos e registros de ameaça por parte dos agentes municipais. Em resposta, a pasta informou que os apontamentos também serão apurados pela investigação da Polícia Civil e pela sindicância instaurada pela Corregedoria da GM, “que também ouvirá testemunhas”.
Sobre o socorro negado à vítima, o órgão declara que “não houve negativa por parte da Guarda Municipal de socorrer a vítima, mas uma determinação da SSP-SP para que o socorro a vítimas seja realizado pelo serviço especializado de remoção, para preservar a pessoa e o local para perícia técnica”. A pasta se refere à resolução nº 5, de 7 de janeiro de 2013, que diz que policiais devem acionar o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) para atender casos de feridos em confronto e não podem eles próprios realizarem o atendimento.
O que diz a decisão judicial
Ao conceder o alvará de soltura de Claudino Gonçalves, o juiz José Henrique Rodrigues Torres, da Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Campinas, sustentou falta de argumentações concretas por parte do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que alegou a necessidade de “conversão em prisão preventiva para resguardo da ordem pública”.
Apoiado em princípios constitucionais de presunção de inocência e direitos humanos, o magistrado decidiu que “o fato de ser o flagrado um funcionário público, que atua na área de segurança pública no âmbito municipal, com vinculação plena ao distrito da culpa, com família nesta cidade, primário e com conduta social reputada idônea até este momento, constitui circunstância bastante para demonstrar ser ele merecedor da liberdade provisória”.
Apesar do parecer judicial, a Ponte identificou, por meio de certidão do Tribunal de Justiça presente nos autos do IP, que o nome de Claudino aparece em pelo menos outros sete processos judiciais, instaurados entre 1989 e 2014 e atualmente extintos, que passam por porte ilegal de arma e lesão corporal.
A reportagem entrou em contato com o defensor do caso, Roberto Carlos Modesto, questionando o advogado sobre as alegações apresentadas pela defesa e acatadas pela decisão do juiz, de que o réu seria primário e sem condenações prévias, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. Também consultado, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) afirmou que o órgão “não emite notas sobre questões jurisdicionais”.
No pedido de liberdade provisória, a defesa de Claudino alega ainda que o guarda é acometido pelas doenças de diabetes e hipertensão e que, “devido aos últimos acontecimentos da pandemia Covid-19, o réu poderia se contaminar e correr “alto risco”.
Acionado para cuidar do caso, o advogado da família Moura, Ewerton Rodrigues da Cunha, disse à reportagem que a família da vítima recebeu com “profunda tristeza” a decisão judicial, especialmente por se tratar de um crime cometido por um “agente público com histórico de processos e condenação”.
Por Jeniffer Mendonça e Manuela Rached Pereira