Capital

São Luiz: Cemitério dos homicídios tem maioria de homens jovens e negros

Trágico perfil do Cemitério São Luiz foi cantado em música dos Racionais MCs, em 1997

Conhecido como “cemitério dos homicídios”, o São Luiz, em São Paulo, foi alçado aos holofotes quando a música Fórmula Mágica da Paz , dos Racionais MCs, estreou em dezembro de 1997. 

A letra da canção, parte do CD Sobrevivendo no inferno,  que vendeu mais de dois milhões de cópias à época, chamava a atenção para a violência da região e para um perfil específico de pessoas que frequentavam o cemitério: mulheres negras e de classes sociais menos abastadas, que visitavam o túmulo de jovens enterrados no local

“Dois de novembro, era Finados

Eu parei em frente ao São Luiz, do outro lado

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E durante uma meia hora olhei um por um

E o que todas as senhoras tinham em comum?

A roupa humilde, a pele escura

O rosto abatido pela vida dura

Colocando flores sobre a sepultura

(“podia ser a minha mãe”)

Que loucura

Cada lugar uma lei, eu estou ligado

No extremo sul da Zona Sul está tudo errado

Aqui vale muito pouco a sua vida

A nossa lei é falha, violenta e suicida”.

cemiterio dos homicidios sao luiz
São Paulo, 2/11/2023 – Cemitério São Luiz, o cemitério dos homicídios, na zona sul de São Paulo (Paulo Pinto/Agência Brasil)

Mais de 25 anos depois do lançamento, que alçou o cemitério como representante local da violência nas periferias brasileiras, dados do Serviço Funerário do Município de São Paulo (SFMSP) obtidos pela DW mostram que o local conserva características únicas. Mesmo com a pandemia do covid-19, que vitimou os mais velhos em sua maioria, a maioria dos mortos enterrados em São Luiz continua a ser o mesmo perfil: homens jovens e negros.

1997 e violência em São Paulo

Foi em um contexto pobre e violento que Mano Brown, vocalista dos Racionais, criado no Capão Redondo, comunidade vizinha ao São Luiz, compôs os versos. Construído pela prefeitura e inaugurado em 1981 para que a população da Zona Sul não precisasse atravessar a cidade para enterrar seus mortos na Vila Formosa, o cemitério passou a ganhar fama de perigoso graças à crise socioeconômica que São Paulo viveu ao fim da década de 1980 e 1990.

Eram tempos difíceis. Em dezembro de 1997, por exemplo, “Desemprego volta a bater record em SP” era manchete no jornal Folha de S. Paulo . Segundo dados da Seade, fundação vinculada à Secretaria da Fazenda e Planejamento, em dezembro daquele ano a taxa de desemprego alcançou 16,6% da População Economicamente Ativa (PEA), o que era equivalente a 1,4 milhão de desempregados.

Para além da crise econômica, São Paulo também foi considerada uma das cidades mais violentas do mundo, com uma taxa de homicídios de cerca de 40 para cada 100 mil habitantes – índice que poderia chegar a mais de 80 a cada 100 mil em determinados bairros da Zona Sul da cidade.

Em 1996, o Jardim Ângela, também próximo ao cemitério, havia sido considerado um dos locais mais perigosos do mundo pela ONU. Já semanas após o lançamento da música, a Folha  afirmava que “em Santo Amaro, região mais violenta da cidade, ocorreram apenas cinco homicídios, entre a noite de sexta-feira e a manhã de segunda. A média por final de semana é de 12 assassinatos”, dizia a publicação. 

Apesar de o SFMSP não dispor de sistema informatizado e integrado de dados com seu acervo histórico, ou mesmo o Instituto Médico Legal (IML) ou Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), quem frequenta o São Luiz desde a década de 1990 sabe como eram os enterros por lá.

O vendedor de flores José Renato, de 58 anos, afirma que trabalha na porta do São Luiz há, pelo menos, vinte anos. Segundo ele, a situação antigamente era muito pior. “Na década de 1990, você não poderia estar aqui a noite, era algo muito perigoso, havia assaltos, trocas de tiros, um monte de coisa. Até no funeral tinha problema, quando uma gangue ou alguns amigos do morto queriam se vingar”, diz.

“Eu enterrei meus primos, tios e alguns amigos por aqui durante esses anos todos. Todos muito jovens e negros, conforme você disse. Era uma loucura, muita gente dos nossos morria o tempo todo. Hoje, isso aqui está lindo”, diz Paulo Souza, de 44 anos, que visitou o túmulo da pequena sobrinha Renata, que tinha 4 anos, quando faleceu por um problema contemporâneo de saúde, há um ano.

Para Priscila Cevada, antropóloga ligada ao Núcleo de Antropologia Urbana da USP, a situação social e financeira da periferia se tornou terra fértil para a violência nessa região da cidade – vitimando, principalmente, jovens e negros.

“Desde os anos 1970, com a expansão do centro da cidade, uma população pobre foi em busca de vagas para morar, visto que o valor dos imóveis e aluguéis subiu consideravelmente. A zona leste já estava bem cheia e a região de Santo Amaro passou a ser uma opção viável aos pobres”, diz.

“Pela escassez de infraestrutura, a população ficou à deriva e lógica, a violência se instaura como uma entidade nesses espaços. Com isso, a criminalidade cresce e a ideia de justiça passa a ser uma opção para os jovens. Então, essa ausência da presença do O Estado, enquanto espaço de socialização, abre portas para o embate da criminalidade e da polícia. É lógico que esse embate só traz mais violência”, afirma.

Algo mudou?

Desde o lançamento da música que alçou as nuances do cemitério São Luiz às demais classes sociais e regiões que compõem São Paulo, muita coisa mudou. Outras, nem tanto.

Hoje, inegavelmente, o cemitério evoluiu. Apesar do barro constante em meio às covas no chão de terra, o local, que foi privatizado no começo deste ano para a empresa Velar SP, conta com uma equipe de manutenção e segurança, além de ter tido diversas reformas.

No dia de Finados, famílias com camisetas em homenagens aos mortos, em sua maioria de moradores da região, são vistas. Centenas de jovens também circulam para oferecer serviços de manutenção com enxadas para as covas, cobrando de R$ 5 a R$ 15 para limpar o mato e ajudar na localização das covas de parentes.

A melhoria do local não é apenas física e representa, de certa forma, também a evolução da sociedade brasileira. Atualmente, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo tem 8,4 mortes por 100 mil habitantes – número muito abaixo das taxas dos anos 1990.

Há, contudo, chagas abertas. O percentual de pessoas homens, negros e jovens enterrados por lá continua muito discrepante em comparação com cemitérios de regiões mais centrais da metrópole o que, segundo especialistas, representa as dificuldades que essa população ainda passa 25 anos depois da música, como a violência, o baixo acesso à saúde pública de qualidade, problemas com drogas, entre outros.

Dados do Serviço Funerário do Município de São Paulo compilados até o ano passado mostram que, nos últimos quatro anos, cerca de 56% dos enterros por lá eram de pessoas negras ou pardas. Para efeito de comparação, em cemitérios mais centrais, como o da Consolação e o de Pinheiros, esse percentual não chega a 3%.

Os jovens também são maioria. Enquanto que nos dois cemitérios centrais relatados, o percentual de pessoas abaixo dos 50 anos enterradas nos últimos três anos é de cerca de 5%, no São Luiz o número vai para exorbitantes 34%.

Além disso, o São Luiz recebeu, nos últimos anos, cerca de 57% dos mortos do sexo masculino. A lógica, porém, se inverte em demais locais. Os cemitérios da Quarta Parada e Consolação, por exemplo, têm um percentual de 56% para mulheres e o restante para homens, por exemplo.

Ednalda Silva Soares, de 45 anos, foi ao São Luiz prestar homenagem ao irmão, Lucas Silva Soares, morto aos 35 anos em janeiro de 2023 após ficar internado por problemas de alcoolismo e tabagismo.

“Eu o encontrei na rua meses antes de ser internado. Ele se separou da mulher, voltou a beber e acabou ficando pelas ruas. Ainda tentei de tudo, mas infelizmente não foi possível salvá-lo”, diz.

Jerusa Ferreira dos Santos, 47, também prestou homenagens a um jovem. Seu filho, Tiago, morreu aos 27 anos após uma epidemia generalizada ao fazer uma cirurgia para prótese em perna. “Meu filho só me deu orgulho. Ele era incrível, mas infelizmente teve esse problema e veio a falecer. Enterramos ele aqui no São Luiz”, conta.

Para Priscila Cevada, a morte de jovens oriundos de comunidades carentes, que enterradas acabam em São Luiz, mostra como a periferia ainda enfrenta grandes desafios.

“Temos um espaço da cidade com uma super população pobre e preta. Para essas pessoas, a mortalidade continua alta e o São Luís continua recebendo esses corpos”, diz. “O grupo Racionais conseguiu botar os olhos do mundo na periferia, mas apenas os olhos. Mas a falta de perspectiva de futuro continua matando esses jovens”, completa.

O álbum dos Racionais que alçou o cemitério ao estrelato é considerado a principal obra do maior grupo de rap do Brasil e o livro que retrata as letras se tornou leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp (Universidade de Campinas), um dos mais concorridos do país. Mas os desafios da população que frequenta o local ainda persistem.

agradecer a Deus, aos orixás

Parei no meio do caminho e olhei pra trás

Meus outros mãos todos foram longe demais

Cemitério São Luiz, aqui jaz

Mas que merda, meu oitão tá até a boca,

Que vida louca, por que é que tem que ser assim?

Ontem eu sonhei que um fulano mudou de mim:

“Agora eu quero ver ladrão”!

Pá! Pá! Pá! Pá!

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