Justiça liberta réu inocentado por vítima
Por Arthur Stabile e Paloma Vasconcelos
Homem que teve carro roubado reconhecia que Heverton Enrique Siqueira não participou do crime, mesmo assim a Justiça o manteve preso por 39 dias
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A Justiça de São Paulo decidiu conceder liberdade provisória para Heverton Enrique Siqueira, 20 anos, suspeito de roubar um carro e três celulares em 10 de outubro, na região de Sapopemba, zona leste da cidade de São Paulo. Ele permaneceu preso por 39 dias, mesmo com a própria vítima do crime o inocentando, assegurando que ele não era o real criminoso.
Nesta segunda-feira (18/11), a juíza Teresa de Almeida Ribeiro Siqueira optou por libertá-lo no dia em que estava agendada nova audiência sobre o caso. Nela, o motorista de aplicativo de transporte roubado naquela data concedeu depoimento após tentar por duas vezes corrigir o primeiro reconhecimento feito no caso, minutos depois do crime acontecer. Ele descreveu que apontou de forma errada Heverton e um adolescente de 17 anos como os autores do crime.
Os dois policiais militares que prenderam o jovem não compareceram ao Fórum da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, local da audiência, o que adiou uma decisão definitiva sobre o caso, o que acontecerá somente em 2020, em data a ser definida. No entanto, a juíza acatou habeas corpus da defesa e considerou os elementos probatórios suficientes para conceder liberdade provisória. Sendo assim, Heverton passa a responder o processo em liberdade e sairá do CDP (Centro de Detenção Provisória) de Mauá, na Grande São Paulo, onde estava preso.
De acordo com o advogado Rogério Leonetti, o depoimento da testemunha foi crucial para a liberdade de Heverton. “A vítima confirmou que não foi ele, que tinha visto os reais meliantes que roubaram ele, a juíza entendeu que isso era uma verdade. Não é absolvição ainda, nem condenação. Ela achou por bem conceder a liberdade provisória”, explica. Segundo ele, Heverton precisará seguir algumas regras enquanto a outra instrução para ouvir os policiais não acontecer, mas, segundo ele, o dia é de vitória. “Vamos trabalhar para soltar ele ainda hoje (segunda-feira), ele tem que estar no CDP de Mauá, vamos ver se conseguimos”, diz.
A decisão emocionou a família do rapaz. “Agradeço a todos que apoiaram a gente, não temos nem palavras para agradecer, estamos muito felizes. Estamos nem acreditando. Tenho certeza que ele está mais do que a gente, foi ele que sofreu naquele lugar [prisão]”, declarou a irmã que mora com Heverton, Leiliane Santos, 24 anos. A mãe, Jorgia Cristine Siqueira, já pensa no futuro. “A expectativa é projetos, montar alguma coisa apra ele trabalhar, sabemos que as pessoas que passaram por esse outro lado [prisão] têm dificuldade de emprego, estou muito feliz. Vou falar o que? Dei um grito aqui de alegria”, afirma.
Jorgia ainda denuncia não ter conseguido visitar Heverton na prisão. “Quero mais uma vez dizer que, quando falamos de luta conta o racismo, contra o preconceito, o Heverton foi mais um e não será o último. A realidade é uma só. A mãe tem todo direito de, quando seu filho, por mais que está certo ou errado, de entrar para vê-lo. Eu fui muito mal tratada por ter uma tatuagem e faz 38 dias que ele está preso e que eu não pude vê-lo”, diz. “Só eu sei o que eu sentir sem poder ver meu filho. Sei que tudo é permissão de Alá. Ele é meu passarinho, queria estar cuidando”, completa.
Kelly Meira da Silva, 19 anos, é namorada de Heverton. Ela já projeta os planos para o futuro com a liberdade do seu companheiro. “Toda essa visibilidade [das reportagens] só ajudou, só deu mais força para a gente ir para frente, continuar persistindo e para ele ter essa liberdade hoje. Não sei nem explicar a felicidade que eu estou sentindo. Muita ansiedade para dar uma braço nele, não estou aguentando. Só quero ele aqui fora para construirmos nossa vida”, afirma.
Entenda o caso
Heverton fumava em uma praça próxima à sua casa no dia 10 de outubro quando abordado pelos policiais militares. Eles procuravam dois suspeitos de terem roubado o motorista a cerca de 1,6 quilômetro de onde encontraram o jovem. Levado para a delegacia de Teotônio Vilela (69º DP), a vítima então o reconheceu.
O jovem possui registros de ligações telefônicas que fez com sua namorada no mesmo horário em que o crime aconteceu, por volta de 8h19 daquela manhã. Há testemunhas, como uma de suas irmãs, que participou da mesma conversa.
A vítima mudou de opinião sobre Heverton no dia seguinte ao crime, quando o homem viu na mesma região as duas pessoas que o roubaram. Ali começou sua tentativa de tirar dois inocentes da prisão. Primeiro tentou ir sozinho ao DP, mas ouviu que o delegado Daniel Bruno Colombino só voltaria na semana seguinte e ninguém colheu seu depoimento para corrigir o reconhecimento feito no dia anterior. O mesmo aconteceu no dia 7 de novembro, dessa vez com o advogado que defende Heverton, novamente sem êxito em retificar o reconhecimento.
Para tentar agilizar a liberdade e inocência do rapaz, a vítima escreveu uma carta de próprio punho, reconheceu em cartório e entregou para a defesa anexar sua versão no processo. Segundo a juíza Teresa de Almeida Ribeiro Magalhães, o fato da pessoa roubada inocentar o suspeito não era suficiente para interferir no processo. Opinião que mudou nesta segunda-feira (18/11) ao acatar o pedido de liberdade provisória.
“Por fim, indefiro o pedido de revogação da prisão preventiva do acusado Heverton, reiterando-se os argumentos e fundamentos expendidos recentemente nos autos quanto à matéria, sem que tenha ocorrido alteração fática ou jurídica no feito”, sustentou, à época, Teresa, mantendo a prisão de Heverton até esta segunda, data para qual já estava agendada a audiência.
Segundo o advogado Cristiano Maronna, ex-presidente e hoje conselheiro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a prisão de Heverton é absurda e a carta da vítima por si só seria capaz de garantir sua liberdade. “Se a própria vítima reconhece que errou, teria que ser libertado imediatamente. Esperar até 18 de novembro para algo que já pode ser identificado agora?! É a prova maior de que a liberdade, especialmente dos pretos, tem muito pouco valor no Brasil. É mais um elemento que destaca o racismo institucional existe no Judiciário”, analisa.
*Esta reportagem foi publicada originalmente neste link: https://ponte.org/apos-denuncia-da-ponte-justica-liberta-reu-inocentado-por-vitima/