PMs mataram David, mas não foi homicídio; entenda
Oito policiais militares foram indiciados por cárcere privado com resultado morte; “passaram um pano sujo de sangue”, critica criminalista
Os oito policiais militares envolvidos na abordagem e morte do vendedor ambulante David Nascimento dos Santos, 23 anos, no dia 24 de abril, foram indiciados por “cárcere privado com resultado morte”, mas não por homicídio.
Imagens divulgadas pela Ponte mostraram o momento em que David dos Santos foi abordado por PMs na Favela do Areião, no Jaguaré, zona oeste da capital paulista, local em que morava, e colocado numa viatura do 5° Baep (Batalhão de Operações Especiais) horas antes de ser achado morto por familiares em um hospital de Osasco, na Grande São Paulo. A versão oficial alega que David morreu após confronto.
O indiciamento foi feito pela Corregedoria da Polícia Militar, sob supervisão e controle direto da 1ª Auditoria Militar, do TJM (Tribunal de Justiça Militar), e aponta que os policiais atrapalharam a perícia ao trocar as roupas da vítima e deram uma “versão mentirosa” para os fatos na Corregedoria em duas oportunidades. O encarregado pelo IPM (Inquérito Policial Militar) na Corregedoria é o capitão Rafael Casella.
A Ponte obteve com exclusividade trechos do documento. No entendimento do órgão corregedor, os PMs devem responder pelos seguintes crimes: cárcere privado com resultado morte, falsidade ideológica, fraude processual e organização de grupo para a prática de violência.
Em um trecho do relatório é informado que “militar reuniu-se com os demais policiais de sua equipe e da equipe que era comandada pelo 1º Sgt PM Carmo, permitindo que a prática inicial de cárcere privado perdurasse até o deslinde da morte de David Nascimento dos Santos”.
Outro trecho do documento aponta que não se “verificam hipóteses de excludente de ilicitude”, que permite que agentes de segurança deixem de responder por homicídio praticado durante o serviço. O dispositivo jurídico constava no pacote anticrime do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro.
A investigação citou apenas os praças (policiais de categoria mais baixa na hierarquia militar) da equipe do Baep E-05207 como participantes da ação: o 1º sargento Carlos Antonio Rodrigues do Carmo, cabo Lucas dos Santos Espíndola, cabo Mauricio Sampaio da Silva e soldado Vagner da Silva Borges, e da equipe do Baep E-05303, composta pelo 2º sargento Carlos Alberto dos Santos Lins, cabo Cristiano Gonçalves Machado, soldado Antonio Carlos Rodrigues de Brito e soldado Cleber Firmino de Almeida. Um oficial, o tenente que comandava a tropa no momento da ação, não consta como indiciado.
O processo no TJM é de responsabilidade do juiz Ronaldo João Roth, o mesmo magistrado que mandou os oito homens para o Presídio Militar Romão Gomes, na zona norte de São Paulo, onde permanecem presos.
Em paralelo ao inquérito militar ocorre investigação tocada pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, que pode resultar em um outro indiciamento.
“Absurdo e grotesco”
A pedido da Ponte, o advogado criminalista Roberto Tardelli analisou o documento, e classificou o indiciamento como “absurdo”. “Cárcere privado seguido de morte é algo absolutamente incompreensível, é uma tipificação que me soa escandalosa, é tripudiar sobre a família da vítima. Ele leva tiros, é colocado na viatura e morre. Isso é homicídio clássico. Passaram um pano sujo de sangue. Isso é absurdo, grotesco”, critica.
Para o criminalista, o fato da não inclusão do crime de homicídio doloso (quando há intenção de matar) pode ser uma maneira de livrá-los de responder pelo crime na Justiça Comum. No entanto, ele acredita que a Polícia Civil não deve levar em consideração o documento elaborado pela Corregedoria.
“Tentaram aliviar a situação deles. Sempre que falamos seguido de, estamos diante de um resultado culposo, de que não quis matar, mas agiu com imprudência. Como morre baleado por imprudência?”, indagou.
“O DHPP não vai aceitar [o indiciamento]. Só se tiver um placa grande no aeroporto dizendo não venha para o Brasil que virou um hospício jurídico”, completou.
O advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), concorda com Tardelli e destaca que os militares deveriam ter sido indiciados “por sequestro, cárcere privado e homicídio doloso”, já que “dessa forma seriam julgados no Tribunal do Júri”.
O responsável pelo inquérito, o capitão Rafael Casella, é o mesmo que pediu a absolvição dos PMs que participaram do massacre de Paraisópolis, quando nove jovens foram mortos em ação policial, em dezembro passado.
Ariel chama a atenção exatamente para esse episódio e lembra que, embora sejam atribuições diferentes, o IPM é anexado ao inquérito da Polícia Civil. Dessa forma, segundo Ariel, “qualquer conclusão do IPM pode abrir precedente para tentar amenizar a responsabilização dos policiais”, tal como ocorreu em Paraisópolis.
Por fim, Alves ainda explica que o não indiciamento do tenente que também participou da ação é devido “existência de uma tradição de proteção do oficialato na PM, tanto quanto aos salários e benefícios, quanto nas punições”, pontua.
Justiça Militar e Comum são “peças independentes”
Para advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, um dos fundadores do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), “o indiciamento na Justiça Militar foi correto”, está dentro da narrativa dos fatos e que não influencia necessariamente um eventual Tribunal do Júri. “São peças independentes”, resumiu.
Para deixar mais claro, o criminalista explicou o funcionamento das duas esferas do poder judiciário. “Se outros crimes comuns não previstos na legislação militar foram observados na conduta, eles podem ser também analisados pela Justiça Comum. Mas, pelo princípio da especialidade, se há crimes tipificados no Código Militar é através desse codigo e da Justiça Militar que eles devem responder”, afirma, após avaliar o caso a pedido da Ponte.
Para ele, é prematuro fazer qualquer previsão fechada sobre os fatos e é preciso respeitar o princípio de presunção de inocência. “O indiciamento é o primeiro ato de uma investigação. Caso haja uma denúncia oferecida, eles continuam presumivelmente inocentes até uma sentença condenatória com trânsito em julgado”, concluiu.
O advogado da família de David dos Santos, Raphael Blaselbauer, afirmou à Ponte ter concordado com o indiciamento. “Acho que pelo conjunto de provas colhidas no Inquérito Policial Militar e pela cognição sumária apresentada pelo encarregado do inquérito, o indiciamento na esfera Militar está robusto e bem apresentado”.
“Quero que sejam presos pelo crime cometido”, diz mãe de David
Ao ser informada que os PMs não haviam sido indiciados por homicídio e sim por cárcere privado com resultado morte, a mãe de David dos Santos, Cilene Geraldina do Nascimento, 38 anos, se disse “chocada”.
“Eu não sabia disso. Estão fazendo de tudo para eles não serem presos pela morte do meu filho. Sequestraram, torturaram, bateram muito nele e depois mataram”, afirma.
Ela pede que os policiais militares sejam responsabilizados pelo crime que, de fato, cometeram. “Tem que ser pelo rigor da lei, porque eles mataram meu filho. Quero que eles sejam presos por homicídio, que apodreçam na cadeia. Eles têm que ser presos pela morte e não por cárcere privado. Eles foram muitos calculistas, chegaram até a trocar a roupa do meu filho”.
A mãe de David contou que a roupa que o filho usava no momento do crime está com o DHPP.
Entenda o crime
Na noite do dia 24 de abril, por volta das 19h30, David Nascimento dos Santos saiu de casa para buscar um lanche que pediu pelo aplicativo iFood. Às 19h48 ele foi abordado pela viatura do Baep dentro da Favela do Areião, local em que morava. Horas depois, o jovem foi encontrado baleado e morto. A família afirma que ele tinha sinais de tortura. Ele trabalhava como vendedor de doces nos trens e tinha o sonho de ser cantor de funk. Deixou dois filhos pequenos.
A mãe dele, Cilene Geraldina dos Santos, 38, afirma que a roupa que David usava quando foi encontrado não é a roupa que ele saiu de casa. “Meu filho sumiu de bermuda e chinelo. Quando mataram eles trocaram a roupa. Foi a polícia que trocou a roupa. A calça do Corinthians nunca foi dele, nem aquele sapato”, relatou em entrevista à Ponte.
Os policiais suspeitos da morte de David negam o crime. No boletim de ocorrência, a versão registrada no 5º DP de Osasco, na Grande São Paulo, pela delegada Maria Cristina da Silva Sá, afirma que os policiais militares do Baep alegaram que perseguiam, na avenida Presidente Altino, em Osasco, um veículo Onix prata ocupado por quatro homens em atitude suspeita.
Segundo os PMs, na favela do Areião estava o motorista de aplicativo Carlos César Cruz, 57 anos, que havia sido assaltado por três homens desconhecidos. A vítima declarou à Polícia Civil ser incapaz de reconhecer os criminosos.
Os PMs das viaturas E0527 e E05211 relataram, no registro da ocorrência, que os três homens abandonaram o carro e seguiram a pé pela favela. Acrescentaram que eles também saíram da viatura e foram a pé atrás dos suspeitos.
Na versão dos PMs, na rua Manoel Antônio Portela, perto de uma empresa desativada chamada Corneta, perto da favela, eles avistaram um homem atrás de uma moita. Em seguida, eles “ditaram palavras de ordem, se identificaram como policiais, mas um indivíduo saiu de mato atirando contra eles, que revidaram e efetuaram cinco disparos”.
Os PMs disseram ainda que acionaram a a Unidade de Resgate e David foi levado para o Hospital Regional de Osasco pela viatura UR 18115, comandada pelo cabo Félix. Os PMs do Baep afirmaram que ele chegou ao local já sem vida por volta das 21h35. De acordo com os PMs, David estava uma pistola 9 mm de marca israelense.
Outro lado
A reportagem procurou a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), para saber sobre o indiciamento dos policiais e também pediu entrevista com o delegado Rodolpho Chiarelli, mas não obteve resposta. Também foram procurados o capitão Casella, através da Polícia Militar, e o juiz Ronaldo João Roth, através da assessoria do Tribunal de Justiça Militar, que também não responderam.
Por Paulo Eduardo Dias – Repórter da Ponte