São Paulo

‘Água é racionada, falta comida’: Por dentro do CDP Mauá

Jovem que saiu há um mês da prisão revela como está a situação durante pandemia; familiares afirmam que parentes com febre e dor estão sem atendimento médico

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Centro de Detenção Provisória de Mauá | Foto: Reprodução/Google Street View

Iuri* saiu da prisão há um mês, portanto, durante o isolamento imposto pela pandemia do coronavírus. Agora, livre, ele sente preocupação com os colegas que ficaram no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Mauá, na Grande São Paulo. 

Superlotação, comida insuficiente, racionamento de água, demora na entrega das cartas e falta de atendimento médico são os principais motivos. Isso tudo, que já é característico de muitas prisões pelo Brasil, toma proporções mais graves por causa da pandemia.

Em entrevista exclusiva à Ponte, Iuri, que é, portanto, egresso do sistema prisional, afirma que o racionamento de água é o que mais preocupa. Por dia, os detentos têm direito a quatro rodadas de água, que fica ligada por apenas uma hora. “Isso quando não faltava água o dia inteiro”, denuncia o ex-detento. Nessas condições, fica impossível manter o asseio e a higiene básica, medidas necessárias para prevenção da Covid-19.

Até a manhã desta sexta-feira (29/5), São Paulo tinha 12 mortes pela Covid-19 nos presídios. Os casos confirmados somam 76 e há 100 suspeitos da doença. Em âmbito nacional, já são 1.265 infecções confirmadas, 922 suspeitos e 42 óbitos, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

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A unidade de Mauá tem capacidade para 626 presos, mas atualmente possui 1.239. Com isso, as celas estão superlotadas e não há colchões suficientes para todos: os presos precisam dividir espaço para dormir.

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As comidas também precisam ser divididas, já que, segundo Iuri, não chegam em quantidade suficiente por cela. Com a suspensão das visitas, uma das medidas para conter o avanço da pandemia do coronavírus dentro do sistema prisional, a “jumbo”, kit com alimentos e produtos de higiene pessoal enviado por familiares aos presos não podem ser entregues pessoalmente ocasionando, muitas vezes, atrasos. Segundo Iuri, alguns ficam mesmo sem ter o que comer.

A falta de atendimento médico é uma queixa antiga da unidade, mas, com a pandemia, se agravou. Os únicos remédios fornecidos, independente da queixa, são analgésicos, como dipirona e paracetamol. “Na enfermaria não existe um médico plantonista. Não tem ninguém para socorrer os presos durante a madrugada, só funcionários, que não são da área da saúde, e, despreparados, atuam como enfermeiros”, relembra Iuri. 

“Para eles poderem atender, a gente tem que ficar 30 minutos gritando e chutando a coluna que interliga os raios. Quando eles vêm, xingam, humilham e querem levar para a solitária”, completa.

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Carta enviada por detento à família contando a situação do CDP em relação ao coronavírus | Foto: arquivo pessoal

Iuri conta que, por diversas vezes, os detentos solicitam diálogos diretos com a direção da unidade, mas dificilmente conseguem. “Eles são arrogantes, xingam e muitas vezes nos agridem, tanto verbalmente quanto psicologicamente. Não existe lei lá dentro”. 

“Quando a gente tomou ciência do que estava acontecendo, chamamos o diretor da unidade, para reivindicar mais água e produtos de higiene para se proteger do vírus. Mas ele falou que não ia ceder”, lamenta.

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As cartas, única comunicação com a família, diante da suspensão das visitas, estão demorando quase um mês para chegar aos familiares. Quem pode, pede para o advogado visitar o parente preso. Quem não pode encontrou uma alternativa para saber como os filhos, maridos e irmãos estão: vão até a porta do CDP e gritam, chamando pelo familiar, que responde lá de dentro, também aos gritos.

“A gente tava mandando bastante cartas para as famílias, para deixar eles informados, e eles ficam segurando as cartas. Eu moro em Mauá, mesma cidade da unidade, e as cartas demoravam mais de um mês pra chegar. Só entra carta registrada, só com selo demora 30 dias”, explica.

Iuri também conta que a luz dentro das celas tem sido desligada para impedir que os detentos vejam as notícias por meio dos jornais televisivos. “Eles querem impedir que os detentos tenham acesso aos cuidados e aos sintomas do vírus. Em vez deles ajudarem, estão limitando o espaço e as informações”, aponta.

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Para Iuri, a ideia de isolar os novos detentos não está dando certo. Quando um novo detento chega da rua, relata, ele fica 20 dias isolado dos demais, para checar se ele está com algum sintoma de Covid-19. Mas, se um preso está há 18 dias no isolamento e chega um novo detento, com ou sem sintoma, é colocado no mesmo local que os demais, que estão prontos para seguir para as celas.

“Nesses dois dias ele pode ser infectado e vai infectar os demais. Na minha visão, tem uma grande falha na prevenção do coronavírus e isso está colocando em risco muita gente. Tem 1.200 vidas lá dentro e eles não estão se preocupando com essas vidas”, critica.

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Detento questiona em carta como vão se cuidar dentro do CDP se a água continua sendo racionada | Foto: arquivo pessoal

Pelo menos dois detentos estão com sintomas de Covid-19 na unidade, segundo familiares. Febre alta, dores no corpo, dores de cabeça, tosse, falta de olfato e paladar estão entre eles. A esposa de um deles, que pediu para não ser identificada, conta que o marido está há uma semana dessa forma e ainda não teve atendimento médico.

“Essa semana eu tava muito preocupada pelos relatos de outros presos para os familiares em relação ao coronavírus e pedi para a advogada ir lá. Ela contou que ele está tendo febre, dor no corpo, falta de paladar e olfato. Ele pede atendimento, mas negam”, relata. 

Por cela, afirma a familiar, os presos tem direito a duas fichas de atendimento médico. Mas, sem retorno, ficam sem as medicações. “Os agentes não estão usando máscaras para entregar o ‘jumbo’ e o sedex, fazendo pouco caso deles”. 

“Minha sensação é de tristeza, por mais que ele tenha errado, ele é um ser humano, não devia estar passando por isso. A gente liga pra conseguir informação e eles falam que não podem falar nada”, lamenta.

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Diálogos entre familiares em grupo de visitas do CDP de Mauá | Foto: reprodução

A mãe do outro detento doente conta que o filho tem bronquite asmática, grupo de risco do coronavírus, e também está sem atendimento médico. Ela afirma que o filho, preso desde outubro de 2019, também tem uma deficiência no sangue, que impede que ele tenha imunidade contra doenças.

“Desde o fim de março estamos correndo atrás dos laudos para Defensoria [Pública] conseguir prisão domiciliar. Na audiência do dia 6 de abril, negaram a saída dele porque os laudos não estavam prontos, porque ele precisava assinar”. narra.

“A Defensoria conseguiu que ele assinasse lá dentro. No dia que ele foi assinar, chamaram ele para o atendimento médico, para dizer que viram o problema no atendimento”, continua a mãe. 

Sem notícias do filho, ela foi até a porta do CDP para conversar com ele. Cada um e um lado do muro. “Ele gritou para mim que tinha assinado o papel e que eles tinham atendido ele assim: rasparam a cabeça dele e quebraram as canetas dele para ele não escrever mais. Mas ele nem sabia que estávamos cuidando disso aqui fora, porque as cartas demoram pra chegar”, lamenta.

Outro lado

Questionada, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo não se manifestou até o momento de publicação da reportagem.

*O nome do egresso foi preservado a pedido dele para evitar represálias para os outros detentos do CDP

Por Caê Vasconcelos – Repórter da Ponte

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