São Paulo

Ciência paulista sofre com cortes, salários sem reajustes e privatização

Problemas incluem falta de concursos públicos e extinção de institutos

O estado de São Paulo, apesar de ter o maior Produto Interno Bruto (PIB) do país, é proporcionalmente o que pior remunera seus cientistas. O dado é um levantamento da  Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC).

No setor da saúde, por exemplo, um pesquisador do Instituto Butantan recebe, em média, metade do que ganha um colega da Fiocruz. Na agricultura, um pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), fundado em 1887 por dom Pedro II, recebe um terço do salário de um pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 

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Helena Dutra Lutgens, presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (Silvio Dutra/Divulgação)

No mês de maio, Otávio Marques, pesquisador do Instituto Butantan, redigiu uma carta de reivindicação de aumento salarial de pesquisadores paulistas. O texto, que teve mais de mil assinaturas de cientistas de diversas instituições do estado, justifica-se: desde 2013 não ocorre um aumento real de salários. Na ponta do lápis, isso representou uma perda de 47% no período, segundo índice de inflação do IPCA. Concursos públicos não ocorrem há mais de 20 anos para pesquisadores e há 30 anos para funcionários.

Além disso, a principal fomentadora da pesquisa no estado, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), recebeu um duro golpe no final de junho: um corte de 30% de recursos, por obra do projeto de lei orçamentária expedido pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) e aprovado na Assembleia Legislativa (Alesp), por 46 votos a favor e 12 contra.

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Para se ter uma ideia, em 2023 cerca de 60% dos recursos que chegaram aos grupos de pesquisa no estado de São Paulo vieram das fundações estaduais. Na última semana de junho, durante o evento Fapesp China Week, cientistas do Butantan e colaboradores apresentaram uma nova vacina contra tuberculose, a BCG recombinante, cujo índice de proteção alcança 99%. 

O projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2025 do governo estadual previa também repartição do orçamento das universidades paulistas com outras entidades, mas, após pressão das universidades, o governo recuou da decisão em maio.

Em abril, o governador Tarcísio já havia esboçado outro ato de desmonte da ciência ao publicar na internet um anúncio da venda de inúmeros imóveis públicos, entre os quais constavam o Instituto Butantan, o Instituto Pasteur e o Hospital das Clínicas, entre outros. Após denúncia do deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL), o governo retirou a página dos destaques do site, alegando ser apenas um teste. “Creio que foi um prenúncio dos planos de privatizações desse governo”, disse o deputado. Os imóveis ainda não foram vendidos.

“As instituições públicas de pesquisa vêm sendo dilapidadas há tempos. É a lógica do neoliberalismo, que enxuga o patrimônio para depois privatizá-lo”, declara Patrícia Bianca Clissa, primeira-secretária da APqC. “Tentamos conversar com o governador, mas fomos recebidas pelo secretário de Governo, Gilberto Kassab, por apenas dez minutos.”

A disparidade entre salários ocorre mesmo dentro do estado de São Paulo, entre pesquisadores de universidades e de institutos: um docente da USP em início de carreira (equivalente ao nível I) ganha R$ 7 mil, enquanto um pesquisador paulista de mesmo nível ganha em média R$ 5 mil. A carreira de pesquisador científico foi criada em 1975, com seis níveis e salários idênticos aos dos docentes das universidades estaduais, em face da congeneridade existente entre essas atividades. Contudo, ao longo do tempo, a equivalência salarial não foi assegurada de forma definitiva. Atualmente, 16,3% dos pesquisadores recebem essa isonomia salarial como resultado de ganho judicial individual.

Uma breve esperança de correção dos vencimentos dos servidores surgiu no final de maio, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu recurso da APqC e manteve a equiparação de salários entre as classes de pesquisadores de universidades e de institutos. Um recurso especial do estado de São Paulo tentava anular a decisão sobre uma ação coletiva proposta pela associação em 2014. Mas, como esperado, o estado recorreu da decisão do STJ, no início de julho, o que poderá arrastar o processo por tempo indeterminado.

Se a correção dos vencimentos dos cientistas é uma novela, a reposição do quadro funcional dos institutos remete a um longa-metragem.

Atualmente, o estado conta com pouco mais de 900 servidores que pertencem à carreira de pesquisador científico. Dados apurados pela APqC mostram que a falta de concursos – aliada às perdas salariais e orçamentárias – tem comprometido as estruturas e levado a um apagão da ciência. Hoje, São Paulo tem quase 1.400 cargos de pesquisadores não preenchidos. Se somadas as carreiras de apoio, o número de cargos vagos passa de 8 mil.

“A ausência de pessoal é visível. O último grande concurso para pesquisadores ocorreu há 20 anos e, para funcionários, há 30. Desmotivado, um pesquisador com nível de doutor vai fazer outra coisa, trabalhar em empresas privadas, em outro setor ou vai para o exterior”, avalia Clissa.

Corte na Fapesp

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Audiência Pública em defesa da Fapesp, na Alesp (AI Beth Sahão/Reprodução)

Foi por meio da Fapesp que, em 1997, o Projeto Genoma foi implantado no estado de São Paulo, permitindo o sequenciamento de uma bactéria que impactava a produção de citros. “Esse sequenciamento da bactéria possibilitou, em tempo recorde, anos mais tarde, que o vírus SARS-CoV-2 (coronavírus) fosse sequenciado no estado”, destaca Addolorata Colariccio, vice-presidente da APqC. 

A Fapesp apoia, em média, 20 mil projetos por ano, e sua importância vai muito além da saúde pública. Nos últimos 27 anos, a agência financiou de startups a grandes empresas em temas como aeronaves e produção de hidrogênio de baixo carbono, além de projetos na Amazônia. As empresas criadas por profissionais qualificados somente pela Unicamp, em Campinas, geram um produto anual de aproximadamente R$ 26 bilhões. Além disso, cada R$ 1 investido em pesquisa na agricultura paulista gera um retorno de R$ 10 a R$ 12 para o estado, de acordo com dados da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). 

“O corte na Fapesp me parece ser o maior golpe contra a pesquisa, não só para São Paulo, mas para o Brasil ”, considera o pesquisador Otávio Marques.

Tarcísio sinaliza reajuste para pesquisadores, mas do agro

Após uma promessa de reajuste salarial e reestruturação de carreiras feita por Tarcísio no ano passado, por ora nada foi concretizado. O governador, entretanto, tem se referido preferencialmente a pesquisadores que trabalham em benefício da agricultura e pecuária, sem mencionar outras categorias. “Não é justo que o nosso pesquisador ganhe menos que o pesquisador da Embrapa”, disse Tarcísio em evento da categoria realizado em abril.

Essa possível “reestruturação de carreiras”, sem consulta aos profissionais, também preocupa os pesquisadores, especialmente os das áreas de saúde e meio ambiente, uma vez que as três categorias são unificadas e regidas por uma única lei.

No final de maio, foi publicada uma resolução do secretário de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo que determina a criação de um Grupo de Trabalho destinado à elaboração de estudos com vistas à reestruturação, valorização e modernização da classe de pesquisador científico no âmbito da Secretaria de Agricultura e Abastecimento. 

Consultada, a assessoria do órgão informou: “A Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA) esclarece que é prática comum do órgão formar grupos de trabalho para discutir assuntos estratégicos. Nesse sentido, comunicamos que foram criados grupos de trabalho especificamente para discutir as leis das carreiras pertencentes à SAA. Esta iniciativa atende a uma demanda do atual Governo, que prioriza o estudo das carreiras do Estado”.

“Até o momento, o que temos são compromissos (firmados apenas por palavras) de que as mudanças que acontecerem na SAA também serão estendidas para as outras secretarias”, explica Clissa.

Institutos fechados por todo o estado

Imagem mostra Fachada do Instituto Florestal de São Paulo
Fachada do Instituto Florestal, extinto pelo governo do Estado (Arquivo/Gov. do Estado de SP)

Em 2021, três instituições da Secretaria do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística – os centenários institutos Geológico, Florestal e Botânico – foram extintas e fundidas no IPA, Instituto de Pesquisa Ambiental. Entre outras funções, o Instituto Geológico fazia o mapeamento de áreas de risco de desmoronamento, essencial em períodos de chuva, enquanto ao Florestal e ao Botânico cabiam a preservação ambiental e a pesquisa de espécies nativas e exóticas.

A Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) deixou de existir há dois anos, no governo de Rodrigo Garcia (ex-PSDB, atualmente sem partido), quando foi absorvida pelo Instituto Pasteur – especialista em estudos sobre raiva. O órgão que pesquisava a dengue em São Paulo tem seus laboratórios sem manutenção em meio ao aumento de casos da doença. No total, 14 laboratórios deixaram de estar vinculados a uma instituição, o que impede a compra de materiais e manutenção de estruturas fundamentais para o trabalho dos pesquisadores. O estado de abandono, inclusive, foi denunciado ao Ministério Público e um procedimento foi instaurado.

A APqC alerta que o maior herbário de São Paulo e terceiro do Brasil, localizado no Jardim Botânico, está ameaçado pela falta de investimentos. Vídeos gravados no local mostram salas sendo invadidas pela água durante as chuvas dos primeiros meses de 2024. Com 550 mil amostras de plantas catalogadas desde o século XIX, seu acervo reúne a documentação original da flora do estado, essencial para o desenvolvimento dos mais variados estudos que envolvem plantas. A concessionária Reserva Paulista, que venceu a concorrência do Jardim Botânico e do Zoológico, é responsável pela manutenção de todos os prédios da área de pesquisa, segundo a associação. “A zeladoria de prédios de pesquisa foi relegada a uma concessionária sem experiência na área de pesquisa ou conservação da biodiversidade”, observa Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.

“As instituições foram extintas sob alegação de economia, mas elas tinham uma estrutura que funcionava e jamais tiveram déficit. Institutos também geram receitas, como o Florestal, que fazia manejo de áreas dedicadas à pesquisa”, explica Lutgens. A APqC defende a reversão do processo de extinção das quatro entidades, assim como defende a pesquisa pública. “A pesquisa pública tem compromisso com o Estado. A pesquisa privada tem compromisso com a empresa”, aponta Patrícia Clissa.

O desmonte se dá também pela venda do patrimônio público: setores do Instituto de Botânica e grandes áreas de preservação do Instituto Florestal vêm sendo entregues à iniciativa privada.

Em 2022, o governo de São Paulo publicou um edital para conceder cinco áreas dedicadas à pesquisa e à preservação ambiental – as Estações Experimentais de Itirapina e Itapeva, e as florestas de Angatuba, Piraju e Águas de Santa Bárbara – para a iniciativa privada. O edital confirmava que a permissão de uso beneficiaria grandes empresas que produzem matéria-prima para papel e celulose, justamente no momento em que o ex-governador João Doria era contratado por uma empresa do setor. As cinco áreas estão impedidas, por decisão da Justiça, de serem concedidas, mas evidenciam o interesse do estado em abrir mão de áreas de conservação.

“Todo este cenário demonstra a displicência das políticas de vários governos estaduais para com a ciência no estado de São Paulo. É um processo de asfixia, que começa com a desvalorização do pesquisador servidor público, falta de concursos e, por fim, no sucateamento de toda uma infraestrutura de pesquisa”, declara Helena Lutgens.

Pandemia “salvou” Instituto Butantan da privatização

Fachada do Instituto Butantan com estátua usando máscara, tendo atrás as bandeiras do Brasil e do Estado de São Paulo
Fachada do Instituto Butantan durante a pandemia (Gov. do Estado de SP/Reprodução)

Uma das mais importantes instituições científicas do país, o secular Instituto Butantan também estava no radar das privatizações do ex-governador João Doria. A epidemia de um vírus, entretanto, mudou seu destino.

“Foi salvo de ser privatizado pelo governo por conta da emergência da pandemia de Covid. O Doria dependia do Butantan para ser presidente”, afirma o pesquisador científico Rogério Bertani. “Mas o Butantan está praticamente privatizado: são 400 funcionários trabalhando no instituto e 3.500 na fundação. A fundação tem o controle, mas é conveniente manter o instituto, porque depende do poder público. Não há licitações”, assegura ele, que ingressou na instituição em 1989 – mesmo período da criação da Fundação Butantan.

O Butantan possui uma problemática própria: o conflito entre a fundação (privada) e o instituto (público). A fundação derrubou mais de 2 mil árvores da mata nativa da centenária instituição com o intuito de construir prédios, fábrica de vacinas, restaurante e edifício-garagem, alterações que fogem do objetivo da entidade científica e ameaçam a flora e o córrego Pirajussara Mirim. As reformas avançaram também em patrimônio histórico: um conjunto de casas foi derrubado para dar lugar a um estacionamento, e parte da antiga Estrada de Osasco, localizada dentro do instituto, foi asfaltada.

A reconfiguração foi consequência do Plano Diretor de Industrialização feito pela Fundação Butantan, que consumiu mais de R$ 1 milhão em um projeto arquitetônico da FGGN Arquitetos, que efetivamente ainda não assentou um tijolo. A área desmatada de 14 mil metros quadrados está abandonada. O Ministério Público contestou o projeto.

Dono do escritório de arquitetura que realizou o projeto, Carlos Augusto Mattei Faggin foi diretor do conselho que tombou o Butantan e assinou um parecer autorizando a demolição de parte do patrimônio tombado. Faggin é presidente do Condephaat desde 2017 e foi condenado por improbidade administrativa pela participação em destombamento de um casarão histórico – demolido para ceder espaço para um estacionamento – em Guarulhos.

Reportagem publicada originalmente pela A Pública

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