Como 3 vendedores passaram de vítimas a suspeitos de roubo
Por Arthur Stabile
O dia de trabalho de três “marreteiros”, como são chamados os vendedores ambulantes, terminou com a morte de dois deles – Rodinei Alves dos Reis e Bruno Nascimento de Souza – e a prisão do sobrevivente, Kauê Oliveira Francisco, em Itaquaquecetuba, Grande São Paulo, no último sábado (12/10), no Feriado de Nossa Senhora Aparecida.
GCMs (Guardas Civis Metropolitanos) de Itapecerica da Serra, Grande São Paulo, foram vítimas de uma tentativa de assalto em um posto de gasolina no km 35 da Rodovia Ayrton Senna, reagiram e acertaram o carro onde os três amigos estavam, quando retornavam do Santuário de Aparecida, depois de vender água e sorvete para os romeiros.
Nas imagens de câmeras de segurança do posto, é possível observar quatro pessoas conversam perto de uma moto amarela, modelo BMW. Ao fundo, dois homens chegam ao local andando, mesmo momento em que um veículo prata para na bomba ao lado dessas pessoas. É possível ver quando a dupla tenta assaltar o grupo de GCMs, que reage. Um guarda atira na direção dos homens que tentam fugir na moto, outro dispara para dentro do carro. A namorada de um dos guardas é baleada e morre, assim como dois dos homens dentro do carro.
O vídeo retrata situação diferente da apresentada pelos guardas na delegacia. Segundo a versão guardas Emanuel Formagio e Adriano Borges Rodrigues, eram cinco homens no carro, dois desceram para assaltá-los e os demais ocupantes eram comparsas que morreram em confronto. A namorada de Emanuel, Roberta Maria de Franca, morreu com um tiro, de autor ainda não identificado, que a atingiu no peito.
Um dos homens consegue sair do carro e pede socorro, conforme registra a câmera de segurança do local. Em troca, recebe pontapés, joelhadas e é amarrado por um dos guardas com corda jogada por frentista do posto de gasolina. Esse rapaz é Kauê, que foi apontado como um dos autores do crime e levado preso junto de Caio Jorge Marques, um dos suspeitos que tentou fugir, mas que buscou socorro na Santa Casa de Suzano, município também na Grande São Paulo, após ser baleado no pé.
Desde o primeiro depoimento na delegacia, Kauê explica que voltava de Aparecida com os amigos Rodinei e Bruno no Fiat Siena prata que está no nome de Luciana de Oliveira Alves, 27 anos, companheira de Rodinei. Como estavam desempregados, o comércio ambulante passou a ser o sustento do trio, que em grandes eventos, como foi a romaria do sábado ou mesmo jogos de futebol, vendiam água, sorvete e amendoim. A Polícia Civil, contudo, acatou a versão apresentada pelos GCMs e prendeu Kauê como um dos assaltantes.
De acordo com o boletim de ocorrência, dentro do carro havia algumas caixas com copos de água e sorvetes, além de R$ 322 e três celulares. Imagens obtidas pela Ponte mostram os amigos confraternizando e mostrando que iam para Aparecida trabalhar horas antes de morrerem. “Aí, rapaziada, estamos chegando em Aparecida. Sorvete tem, água, tem. Vamos para cima! 150 palitos e três caixas d’água. Bagulho está louco!”, brincou Rodinei, em vídeo enviado aos amigos marreteiros.
“Ele disse que queria voltar de lá com R$ 3 mil para investirmos em nosso negócio de açaí”, lembra Luciana, em entrevista à Ponte. Ela conta que o companheiro, pai de sua filha de cinco anos, sempre usava o celular e ficava conectado. Quando deu 20h de sábado e ele não mandou mais mensagens, começou a buscar informações. Ela só descobriu o paradeiro dos três no início da manhã de domingo, quando o caso passou na televisão. Luciana ligou para a PRF (Polícia Rodoviária Federal) e ouviu que o marido morreu ao participar de um roubo.
“O policial falou que tinham cinco indivíduos dentro do carro, dois deles saíram e anunciaram o assalto. Eu falei que tinha três no carro, não cabia mais dois pelo tanto de mercadoria. Não cabia mais duas pessoas no carro. É só olhar o vídeo deles, o Bruno está deitado de um lado e tem mercadoria do outro, não dava para cinco pessoas ocuparem o carro”, diz Luciana.
Jair Martins de Souza, 54, pai de Bruno, conta que ele morreu às 14h de sábado, mas a família só recebeu a notícia às 16h de domingo, o que quase impossibilitou seu enterro. “Chegamos para fazer os procedimentos no IML, tinha passado muito tempo e não haviam colocado na geladeira o corpo. Se demorássemos mais um pouco, ele seria enterrado como indigente”, conta.
O enterro do primogênito de Jair aconteceu em caixão fechado. Segundo o pai, o cheiro estava forte. Apenas ele pode se despedir do filho ao fazer o reconhecimento, mas parentes e a mãe não conseguiram ter um ritual de passagem da forma que imaginavam. “Será complicado. Ele era o mais velho, Tenho 5 filhos agora. O Bruno era uma pessoa muito ativa. Vem na mente as cenas de quando ele era pequeno, de ver nascer e, depois, ver em cima de uma mesa cheio de tiro. Deu um negócio…”, disse, emocionado, o pai.
A família de Kauê preferiu não dar entrevistas. Mãe e irmãos estavam presentes na delegacia seccional de homicídios de Mogi das Cruzes, cidade vizinha a Itaquaquecetuba. É lá que vai acontecer a investigação da morte de Rodinei, Bruno e Roberta. Na tarde desta quarta-feira (16/10), os familiares e amigos dos três cobraram explicações por parte da Polícia Civil. Eles protestavam com faixas e pediam pela liberdade de Kauê. O entendimento é de que os vídeos divulgados mostram que nenhum deles tentou roubar os GCMs e os mortos eram inocentes, não bandidos.
“Querem incriminar meu genro. Vou questionar tudo! A polícia acha que por ser pobre, marreteiro, pode fazer tudo. Tem muita irregularidade aí. Enquanto tivermos voz para reclamar, vamos fazer. Dessa vez vamos mostrar quem é Rodinei”, lamentou Ângela de Souza, sogra de Rodinei.
A Ponte esteve no posto de gasolina BR do quilômetro 35 da rodovia Ayrton Senna, mas nenhum frentista deu detalhes sobre o caso. Um deles apenas explicou que tudo aconteceu muito rápido e que, portanto, ninguém viu. Ao ser questionado sobre o fato de as imagens registrarem um frentista jogando uma corda para o GCM amarrar Kauê, ele desconversou. “Não deu para ver nada. Aconteceu na mudança de turno”, disse. Nenhum outro funcionário quis falar com a reportagem.
Questionada, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, sob comando do general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), explicou que “os dois homens detidos foram reconhecidos pelas vítimas, presos em flagrante e indiciados por latrocínio”. “A autoridade judicial determinou a conversão da prisão em preventiva. Imagens de câmeras de monitoramento do posto de gasolina são analisadas e as vítimas envolvidas serão ouvidas novamente para auxiliar no esclarecimento dos fatos”, explica a pasta.
Às 22h desta quarta-feira (16/10), o delegado responsável pelo caso, Rubens José Ângelo, confirmou à reportagem que pediu a soltura de Kauê. “Pedi a soltura após investigação aprofundada. Pedi a revogação da prisão, eu mesmo fui ao CDP (Centro de Detenção Provisória) de Suzano. Não foi esse vídeo [do posto] isolado, há outros deles preparando o material para Aparecida e mais outras investigações”, explicou brevemente à Ponte, dizendo que os detalhes serão apresentados em uma coletiva de imprensa nesta quinta-feira (17/10).