Posses presidenciais excepcionais na história dos EUA
Quando a voz de Lady Gaga soar durante a posse de Joe Biden nesta quarta-feira (20/01), exatamente 14 dias depois de apoiadores de Donald Trump invadirem o Capitólio, o novo presidente dos Estados Unidos poderá começar sua tarefa de reconciliar um país que se encontra dividido como há muito tempo não se via.
“O significado clássico da cerimônia de posse presidencial é a transferência de poder em uma cerimônia pacífica”, ressalta Jürgen Martschukat, especialista em história americana da Universidade de Erfurt. Mas uma olhada nos livros de história serve para destacar o quanto a situação é diferente desta vez.
Desde que George Washington se tornou o primeiro presidente dos EUA a fazer seu juramento de posse, em 30 de abril de 1789, o sinal mais visível de uma transferência pacífica de poder é a presença do líder que se despede do cargo. Mas Trump anunciou repetidamente que não vai à cerimônia.
O ritual desta quarta-feira também permitirá pouco público no sentido clássico, pois devido à pandemia de coronavírus e o medo da violência, o evento ocorrerá na maior parte virtualmente.
Posse de Jefferson sem antecessor
Na sociedade americana, a anunciada ausência de Trump traz outras poucas lembranças. No século 19, três presidentes romperam a tradição de não comparecer à posse de seu sucessor eleito.
Em 4 de março de 1801, Thomas Jefferson, acompanhado por congressistas e oficiais de uma milícia de cidadãos, entrou no prédio do Parlamento de Washington – o Capitólio ainda estava em construção – e fez seu juramento de posse ao meio-dia em ponto. A banda dos fuzileiros navais tocou. Ambos os detalhes ainda são tradição. Foi a primeira posse presidencial na capital recém-fundada e também a primeira da qual o antecessor – no caso, John Adams – não participava.
Depois viriam o filho de Adams, John Quincy Adams, em 1829, e Andrew Johnson, em 1869. A ausência de antecessores na posse presidencial ainda se repetiria algumas vezes na história americana, mas por motivos de saúde ou pela morte súbita de um presidente.
Foi o que aconteceu em 22 de novembro de 1963 às 14h38 (horário local), quando Lyndon B. Johnson fez seu juramento a bordo do avião presidencial Air Force One, no aeroporto de Dallas. Duas horas antes, o presidente John F. Kennedy havia sido assassinado. Ao lado de Johnson estava a viúva de Kennedy, Jacqueline. O sangue de seu marido ainda manchava seu traje Chanel cor-de-rosa.
“Fim do pesadelo”
Richard Nixon não estava presente quando seu vice, Gerald Ford, prestou juramento de posse em 8 de agosto de 1974 na Sala Leste da Casa Branca. Nixon havia anunciado sua renúncia em um discurso televisionado depois que ficou claro que o Congresso iria tirá-lo do poder por impeachment por causa do escândalo de Watergate. A primeira declaração pública de Ford soava otimista: “Meus queridos compatriotas, nosso longo pesadelo nacional terminou, nossa Constituição funciona”, disse.
Quase 50 anos depois e após quatro anos de gestão do republicano Donald Trump, Joe Biden poderia tomar as palavras de Ford como um exemplo. “A divisão do país, a crescente incompatibilidade dos dois partidos dos EUA, tudo isso vem se acirrando desde os anos 1970”, avalia o historiador Jürgen Martschukat, em entrevista à DW.
Ele vê Trump como o “efeito de um longo conflito latente entre os vários campos – entre a cidade e o campo, assim como entre vencedores e perdedores em um mundo cada vez mais globalizado”. Segundo Martschukat, isso é algo que foi ignorado “por muito tempo”.
Mas já houve dias em que um presidente americano assumia o cargo em meio a um país tão dilacerado quanto o atual. Foi o caso em 1869, após a Guerra Civil Americana, quando Andrew Johnson deixava a presidência e Ulysses Grant assumia. “Aquela mudança de cargo encerrou o que foi talvez a fase mais decisiva da história americana”, sublinha Martschukat. “O fato de o presidente que saía do poder não estar presente refletia a turbulência do país, como também desta vez.”
Racismo ainda divide os EUA
Antes da eclosão da Guerra Civil Americana (1861-1865), Abraham Lincoln havia declarado que não toleraria uma divisão. Em reação à eleição do oponente moderado da escravidão para presidente dos Estados Unidos, sete estados escravocratas deixaram a União no inverno de 1860/61 para formar os Estados Confederados da América. A guerra, com centenas de milhares de mortos, seguiu seu curso. Lincoln não chegaria a testemunhar a rendição dos confederados. Pouco depois de sua reeleição, ele morreu assassinado a tiros em 15 de abril de 1865.
A principal polêmica da guerra civil foi a escravidão. De fato, até hoje o racismo divide o país e, como afirma o historiador Martschukat, é “um fator central” no conflito político nos EUA. Isso, por si só, tornou Barack Obama um portador de esperança. Cerca de 1,8 milhão de pessoas foram à sua cerimônia de posse como primeiro presidente negro dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 2009. Aquele evento se tornou uma demonstração do multiculturalismo dos EUA. Embora a banda de fusileiros navais tenha tocado como sempre, o que tocou o coração das pessoas foi a apresentação de Aretha Franklin. Ela cantou o hino nacional não oficial dos EUA: My country, ‘tis of thee.
É uma ode à liberdade. “Terra onde meus pais morreram”, diz a letra. “Terra do orgulho dos peregrinos, que o grito de liberdade ressoe de cada encosta da montanha!” A canção patriótica escrita por Samuel Francis Smith em 1831 lembra a maneira como os americanos se viam desde a Declaração da Independência em 1789.
“Ela fala de liberdade e busca da felicidade”, lembra Martschukat. “Essas promessas foram feitas a todos, mas desde o início houve pessoas que foram excluídas.” O historiador afirma que mulheres, afro-americanos e outras minorias tiveram que conquistar eles mesmos esses direitos. “O conflito permeia toda a história americana e chegou a um auge nos últimos anos”, ressalta. “Aquilo que une é o mesmo que separa.”
Para a posse do futuro presidente dos EUA, Joe Biden, e sua vice Kamala Harris nesta quarta-feira, muitas estrelas foram anunciadas. Além de Lady Gaga, a cantora e atriz Jennifer Lopez também participará. Já o ator Tom Hanks apresentará o especial de televisão Celebrating America, e uma instalação de arte deverá ser montada no parque National Mall diante do Capitólio.
Quatro anos após o anúncio de Donald Trump sobre “tornar a América grande novamente”, cabe ao presidente Biden cumprir essa promessa à sua maneira.
Por Stefan Dege, da Deutsche Welle