Justiça

Após serem ouvidos como testemunhas, PMs são acusados de matar David

Tenente e cabo que participaram de ação que terminou com morte de vendedor ambulante na zona oeste de SP são acusados de falso testemunho

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David foi morto depois de abordagem policial em 24 de abril de 2020 | Foto: arquivo pessoal

No segundo dia de audiência no Tribunal de Justiça Militar, realizada virtualmente nesta segunda-feira (7/7), os dois PMs ouvidos como testemunhas da abordagem policial que terminou com o assassinato de David Nascimento dos Santos, 23 anos, foram acusados de um crime. O vendedor ambulante apareceu morto após ser levado da rua paralela à de sua casa quando esperava um lanche pelo iFood, na noite de 24 de abril de 2020.

Após três horas de depoimento, o promotor de justiça Edson Corrêa Batista, do Ministério Público, solicitou requerimento para que o tenente PM Gabriel Gonçalves dos Santos Camargo e cabo PM Edson Felix de Medeiros fossem acusados de falso testemunho. O colegiado do TJM concordou e acolheu a solicitação.

A audiência foi realizada por videoconferência por causa da pandemia do coronavírus e participaram cinco juízes da Justiça Militar, entre eles o juiz responsável pelo caso, Ronaldo João Roth, o promotor Edson Corrêa Batista, os réus e os advogados de defesa, e as testemunhas militares. 

“Diante das omissões de ordem funcional, por parte do tenente, queremos a extração do depoimento e envio para a Corregedoria a fim de apurar transgressão militar do oficial. Em relação do depoimento feito pelo cabo, vemos inúmeras omissões, grotescas e injustificáveis, de uma testemunha que não sabe precisar espaço e tempo. Pareceu que a omissão foi intencional. Também solicito a extração para crime de falso testemunho”, argumentou o promotor Edson Corrêa Batista ao fim da audiência.

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“Policiais militares, integrantes do Baep, não responderam o óbvio, debocharam do colegiado. Devem estar escondendo a verdade. O crime de falso testemunho está muito aparente”, completou o juiz Roth, argumentando que o TJM irá aguardar o fim dos depoimentos, no dia 14 de julho, para enviar a solicitação à Corregedoria.

Em 19 de junho, a Justiça militar aceitou a denúncia do MP que indica o seguinte: no dia 24 de abril, às 19h48, na esquina da rua Andries Both com a Marginal do Pinheiros, na Favela do Areião, no Jaguaré, zona oeste de SP, os policiais do 5º Baep (Batalhão de Operações Especiais) 1º sargento Carlos Antonio Rodrigues do Carmo, 2º sargento Carlos Alberto dos Santos Lins, cabo Lucas dos Santos Espíndola, cabo Cristiano Gonçalves Machado, soldado Vagner da Silva Borges, soldado Antonio Carlos Rodrigues de Brito e soldado Cleber Firmino de Almeida sequestraram David Nascimento dos Santos e, na sequência, o mataram. Um cabo e um tenente apareciam como testemunhas a ação. 

Em um depoimento que durou duas horas, o tenente Gabriel Gonçalves dos Santos Camargo argumentou que a ação dos policiais militares, subordinados a ele no dia da morte de David, foi legítima. Camargo contou que os PMs trabalhavam com ele há cerca de um ano.

O tenente detalhou que ficou ao lado do sargento Carmo no começo da ação, quando os policiais começaram uma perseguição a pé a três suspeitos de roubar um carro na Favela do Areião e que permaneceram juntos até a Favela dos Porcos, atrás de duas pessoas que “usavam roupas escuras, calças e camisetas”. Lá, ficou dois minutos distante cerca de 100 metros da equipe de Carmo, quando foi surpreendido pela “troca de tiros”.

“Nos separamos nas caixas d’água. Voltei com a minha equipe para a linha do trem e ele foi para frente. Foi muito rápido, cerca de dois minutos até ouvir os disparos”, contou o tenente Camargo. 

Questionado pelo juiz Ronaldo João Roth sobre o calibre das armas que dispararam, o tenente disse que não sabia diferenciar, o que causou espanto ao magistrado. “Se você que é perito não sabe, ficamos perplexos”. O tenente afirmou que, dos seis tiros efetuados, cada um dos PMs (Carmo, Espíndola e Borges) foi responsável por um. 

Na sequência, Roth perguntou ao tenente sobre a abordagem feita pela equipe do sargento Lins: “Eu não encontrei a equipe do Lins em nenhum momento, não vi essa suposta abordagem”, respondeu Camargo.

“O senhor afirma que em momento algum soube dessa abordagem, que ela [a pessoa] foi colocada dentro da viatura?”, retrucou Roth, que recebeu como resposta que só soube da abordagem depois, pelo cabo Felix, que, naquele dia, era o motorista da viatura comandada por ele. 

O tenente Camargo afirmou que acredita que a pessoa abordada pelos PMs, que trajava bermuda e chinelo, não é a pessoa que foi morta após a troca de tiros. “Não tem nada a ver com esse cara que está aí está de bermuda”, disse ao juiz.

Na sequência, o juiz Roth questionou se o tenente, que afirmou coordenar a ação, sabia explicar como a roupa de David foi trocada em menos de meia hora. “Não sei explicar. O que eu vi foi o que eu disse. Vi o indivíduo caído com calça, tênis e blusa”, respondeu.

Ao término do depoimento, o juiz Roth, apontou que Camargo não se recordava de detalhes importantes e que “qualquer oficial que se preze tentaria esclarecer os pontos”, após receber como resposta que o tenente não se recordava de qual lado a arma estava ao lado do corpo de David, nem se o corpo de David estava virado para cima ou para baixo. 

O promotor Edson Corrêa Batista disse que o depoimento de Camargo era confuso e “um desserviço”. “Se você não está como réu hoje, tem que agradecer muito, porque foi por pouco, mas o processo ainda não acabou”. 

O MP questionou se havia prisão para averiguação, mas o tenente negou que exista essa prática e que não foi o caso com David. O tenente voltou a cravar que acredita que a pessoa abordada nas imagens não é a pessoa que foi morta e recebeu como resposta do MP que “não há dúvidas de que David é a pessoa abordada”. “Se você trocar a roupa você não é mais o mesmo?”, questionou o promotor.

O segundo depoimento da tarde, durou cerca de 50 minutos. Foi a vez do cabo Edson Felix de Medeiros, que atua na PM há 27 anos, contar o que presenciou na noite de 24 de abril. O PM afirma que ficou junto com a vítima do roubo até o momento do tiroteio, quando foi chamado pelo tenente Camargo. 

Felix narrou que a vítima descreveu que as três pessoas que a assaltaram usavam calça, mas não descreveu nenhuma característica física das vítimas. O cabo, que viu as pessoas correndo, disse que só se lembrava que usavam calça e tinha estatura mediana.

Ele conta que, quando o sargento Lins abordou David, foi até ele questionar como eram os suspeitos. Sem levantar da viatura, viu que David estava no banco de trás com os PMs. O cabo Felix contou que Lins disse que estava com uma pessoa na viatura, de bermuda e chinelo. Imediatamente, avisou a Lins que as características não batiam e orientou que David fosse liberado.

Questionado diversas vezes pelo juiz Roth, pelo colegiado do TJM e pelo MP, Felix disse que não sabia precisar a distância da Favela do Areião para a Favela dos Porcos, tampouco o tempo que cada episódio durou na noite do dia 24 de abril. 

O cabo afirmou que o sargento Lins voltou para dentro da comunidade com David e que, ao passar novamente pelo ponto onde ele estava, notou que o vendedor não estava mais na viatura. Mais uma vez, não soube precisar quanto tempo demorou para isso aconteceu.

Felix completou que o tenente Camargo o acionou para que fosse à Favela dos Porcos depois do tiroteio, mas também não sabia precisar a distância de uma favela para a outra, a pé ou de carro. Assim que chegou na Favela dos Porcos, o tenente Camargo lhe disse “Quando o resgate chegar, vamos escoltá-los até o hospital”.

O cabo não sabe precisar em que momento contou ao tenente sobre a abordagem feita pelo sargento Lins, que pode ter sido na viatura ou no hospital. Mas afirma que contou que “Lins abordou uma pessoa, pediu as características e eu disse que não batia”.

O que dizem os advogados

Para o advogado Raphael Blaselbauer, que representa a família de David, os depoimentos do cabo e do tenente terão “peso no julgamento”. “São depoimentos altamente conflitantes e contraditórios, que desmontam por completo a tese da defesa”, aponta.

Blaselbauer afirma que há indícios, em ambos os depoimentos, de que os PMs acobertaram os crimes praticados. “Tanto o cabo, quanto o tenente praticaram o crime de falso testemunho que deverá ser apurado pela Corregedoria da PM”, declara.

“Se os policiais denunciados tivessem praticado ação legítima, não haveria necessidade de os depoentes mentirem de forma deslavada em seus depoimentos. Tanto é assim, que o próprio Juiz Roth descreveu a conduta dos depoentes como um deboche”, finaliza o advogado da família de David.

Já o advogado Mauro Ribas, que cuida da defesa dos sete PMs acusados do sequestro seguido de morte de David, ao lado de Renato Nascimento Soares, a audiência fortalece o argumento da defesa dos PMs: “Reforçamos a posição de que a ação dos policiais foi legítima e foi confirmada hoje pelo depoimento das próprias testemunhas arroladas pelo Ministério Público. Uma delas afirmou, que inclusive, a ação foi legítima”, destaca. 

Outro lado

A reportagem solicitou entrevista com o tenente PM Gabriel Gonçalves dos Santos Camargo e o cabo PM Edson Felix de Medeiros às assessorias da Secretaria da Segurança Pública e da Polícia Militar e aguarda retorno.

Por Caê Vasconcelos – Repórter da Ponte

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