Dependência econômica e fé se misturam em cidade do médium suspeito de abuso
Por Alex Rodrigues, da Agência Brasil
Além de dividir opiniões, o escândalo em torno das acusações de crimes sexuais supostamente cometidos pelo médium goiano João Teixeira de Faria, o João de Deus, destaca, mais uma vez, as peculiaridades de Abadiânia (GO). É no pequeno município de aproximadamente 12 mil habitantes, a cerca de 110 quilômetros de Brasília e à mesma distância de Goiânia, que o médium de 76 anos fundou, em 1976, a Casa Dom Inácio de Loyola.
Ao longo de 42 anos realizando consultas e aconselhamento espiritual, além das chamadas cirurgias espirituais, João de Deus se tornou famoso nacional e internacionalmente. Movidos pela fé ou pela curiosidade, personalidades artísticas e políticas como as apresentadoras Xuxa Meneghel e Oprah Winfrey; a ex-presidenta Dilma Rousseff e o presidente Michel Temer; a modelo Naomi Campbell; a atriz Shirley MacLaine, entre outras celebridades já estiveram em Abadiânia. O que elevou o prestígio de João de Deus e transformou a Casa Dom Inácio de Loyola no principal polo atrativo da cidade, gerador de empregos diretos e indiretos em um município com poucas alternativas econômicas.
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“É fato que ele [João de Deus] é responsável pela geração de aproximadamente 1.2 mil vagas de trabalho no município”, reconhece o prefeito José Diniz (PSD) ao declarar que as denúncias trazidas a público primeiramente pelo programa Conversa com Bial, da Rede Globo, e, depois, pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO), chocou a toda a cidade.
“Ficamos todos muito preocupados com a notícia”, continuou o prefeito, referindo-se aos potenciais prejuízos econômicos que a ameaça do MP estadual pode trazer à cidade caso se concretize. Ontem, promotores da força-tarefa criada pelo MP goiano para apurar as suspeitas afirmaram que, diante da dificuldade de obtenção de provas, em tese, denúncias apresentadas por várias mulheres podem levar à condenação de acusados por crimes sexuais.
“Ainda é cedo para falarmos sobre se já houve possíveis impactos econômicos na cidade, pois os atendimentos acontecem de quarta a sexta-feira e muita gente começa a chegar na quarta. Já quanto às denúncias, não há muito o que dizer. Quem tem que cuidar delas é a Justiça e, pelo que eu vi, disso o Ministério Público já está cuidando muito bem”, acrescentou o prefeito que, na última eleição, derrotou um concorrente que contou com o declarado apoio de João de Deus.
Duas cidades
Cortada pela rodovia BR-060, que liga Brasília a Goiânia, a cidade parece duas: do lado direito de quem se dirige à capital goiana, fica a Casa Dom Inácio de Loyola, que funciona em um bem cuidado terreno que o médium afirma ter recebido como uma doação. Em função do afluxo de pessoas que buscam atendimento gratuito às quartas, quintas e sextas-feiras, é deste lado que se concentra a maioria das pousadas, hotéis, restaurantes, lanchonetes, lojas de roupas e outros estabelecimentos comerciais. É o chamado turismo religioso.
Segundo funcionários da Casa Dom Inácio, entre 3 mil e 5 mil pessoas são atendidas semanalmente. Aproximadamente 25% destes frequentadores vêm do exterior.
Quase a totalidade dos demais atendidos mora em outras cidades. Abadienses frequentando o local são poucos.
“A verdade é que as pessoas de Abadiânia que frequentam a casa são as que trabalham lá. O público frequentador é de fora da cidade”, comenta o prefeito. De acordo com os mesmos funcionários do centro espírita, a entidade mantém 40 empregados com vínculo empregatício, somados os da Casa Dom Inácio e os da chamada Casa da Sopa, onde são servidas refeições e desenvolvidas atividades sociais.
De acordo com a prefeitura, há 69 pousadas e hotéis devidamente regularizadas funcionando na cidade, mas o total de estabelecimentos podechegar a 90 se incluídas as moradias transformadas em pensões.
“A cidade praticamente depende do João de Deus”, diz Valdete Ferreira de Melo, dona de uma pousada. Para ela, João de Deus é inocente.
“Ah, mas você tem pousada”, vão dizer. Não se trata disso. Eu amo e sou grata à casa, pois já recebi muitas graças. Conheço o trabalho da casa, assim como milhares de outras pessoas que estão testemunhando as curas e as graças aqui recebidas”, diz a comerciante, garantindo de já ter convivido com o médium e jamais ter presenciado nada de estranho em seu comportamento.
“Ele frequentou minha casa e lá havia mocinhas, rapazes, e nunca na vida ele fez ou falou nada. Ele levava toda a turma para a fazenda dele, sempre foi amigo, e nunca aconteceu nada disso que estão falando. É um choque, mas a verdade virá à tona. Enquanto não houver provas, ninguém pode dizer nada”, argumentou Valdete, questionando a demora das denunciantes em tornar público o que afirmam ter acontecido.
Visitantes pós-denúncia
No site da Casa Dom Inácio, há uma relação com os nomes de 51 pessoas de nove estados, além do Distrito Federal e da França, que atuam como guias de grupos que visitam o centro espírita periodicamente. Entre eles está Dicleia Guterres, de Santa Maria (RS).
Há 23 anos frequentando a casa, ela calcula já ter conduzido cerca de dez mil pessoas ao local – atividade que encara como uma missão assumida após “ser curada de sérios problemas na coluna”. “Neste tempo todo, nunca vi nada que desabonasse a conduta do João. Ele nunca faltou o respeito comigo ou com qualquer pessoa e nunca presenciei ninguém do meu grupo ser atendido separadamente. Todos sempre foram atendidos publicamente, diante de todos”, garante a guia, antes de ponderar que, se for provado que o médium agiu conforme dezenas de mulheres afirma, “ele terá que pagar, com certeza”.
Aos 82 anos de idade, o aposentado Joaquim Pedro de Menezes foi um dos que encararam com Dicleia uma viagem de mais de 32 horas de ônibus leito para rever o médium. Na companhia de outras 39 pessoas, incluindo sua esposa, ele saiu de Santa Maria (RS), por volta das 19 horas do último domingo (portanto, já depois das denúncias contra João de Deus virem a público) e chegou a Abadiânia perto das 6 horas de hoje.
“Há seis anos, eu tive um câncer nas cordas vocais e estava ameaçado de perder a voz. Tive sorte de ser operado espiritualmente, ser curado e estar bem até hoje. Para mim, as denúncias são uma calúnia. Todas as 12 vezes em que estive na casa, só presenciei ele fazendo o bem. E nunca ouvi ninguém nunca falar nada contra João de Deus”, afirma o aposentado.
Autora de um livro sobre João de Deus, Fabiane Xavier Martins conheceu o médium há cinco anos, quando decidiu buscar, em Abadiânia, tratamento para um problema de saúde. Há quatro anos, se fixou na cidade e passou a acompanhar de perto o trabalho desenvolvido na Casa Dom Inácio. Dizendo ter ficado “muito triste” ao tomar conhecimento das denúncias, ela também duvida da veracidade dos fatos narrados por dezenas de mulheres que já deram entrevistas à imprensa ou procuraram o Ministério Público. “Não acredito que isso seja verdade. Tenho certeza que não é. Vai acontecer algo para que as pessoas descubram porque disso tudo estar acontecendo”.
Na tarde de terça-feira, o MP de Goiás informou já ter prestado 206 atendimentos a mulheres que se apresentam como vítimas de João de Deus. Duas delas residem no exterior (uma nos Estados Unidos e outra na Suíça) e a forma para que seus depoimentos sejam colhidos ainda será definida. As outras se identificaram como sendo de Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. As mulheres que se dizem vítimas do médium contataram o MP goiano por meio do endereço eletrônico especialmente criado para este fim ([email protected]) ou pelos telefones (62) 3243-8051 e 8052.