Política

“É hora de pôr interesses do país à frente dos individuais”, diz Boulos

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Guilherme Boulos (PSOL) durante debate na Band (TV Band/Reprodução)

A chegada ao segundo turno na eleição para a prefeitura de São Paulo, em 2020, consolidou Guilherme Boulos (Psol) como uma liderança nacional da esquerda. Sua projeção foi reconhecida internacionalmente na semana passada, ao ser incluído na lista de 100 líderes emergentes do mundo feita pela revista Time, dos Estados Unidos.

Boulos e a cantora Anitta foram os únicos brasileiros selecionados. Para se fazer ouvir, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) não chegou a ter que rebolar, mas precisou aprender a sorrir. Ou melhor, permitir a si mesmo ser mais espontâneo.

Em 2018, quando participou da eleição presidencial com menos de 1% dos votos válidos, recebeu críticas dentro da própria esquerda pela sisudez de sua fala. Chegou a ser comparado ao raivoso Luiz Inácio Lula da Silva de 1989, ano em que o petista tentou pela primeira vez chegar à presidência, derrotado por Fernando Collor.

Na entrevista a seguir, Boulos reconhece que a extrema direita “deu um banho” em todo o espectro político no uso das redes sociais em 2018. A disparidade de forças serviu de alerta a ele e seu partido, que recorreram a uma equipe especializada para pensar em estratégias bem-humoradas e leves de abordar os temas densos que a esquerda traz para o debate.

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“Ficou evidente que se a gente não buscasse se apropriar e dialogar com essas ferramentas de diálogo de rede, humor, ironia, estávamos fadados a uma derrota de longo prazo. Nós tivemos essa compreensão, e sem nunca apelar para fake news”, comenta.

Deu resultado. Na eleição em São Paulo, Boulos desbancou candidaturas com maior investimento e capital político para chegar ao segundo turno. No caminho, deixou para trás o candidato Celso Russomano (PRB), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Apesar do espaço conquistado, o psolista se recusa a apresentar-se como pré-candidato a presidente em 2022. No início de fevereiro, Fernando Haddad (PT) recebeu orientação de Lula para “colocar o bloco na rua”, nas palavras do petista. Boulos criticou o movimento na ocasião, por entender que a prioridade da esquerda deveria ser a criação de um programa comum, antes de pensar em nomes.

“O Ciro Gomes lançou a candidatura dele em 2018. Agora, o PT sinalizou o lançamento do Haddad. Se eu e o Flávio Dino ou a Manuela D’Ávila, pelo PCdoB, decidirmos fazer o mesmo, chegamos a 2022 com quatro candidaturas do nosso campo. Quem ganha com isso? Do meu ponto de vista, o Bolsonaro. Esse peso eu não vou carregar, e irei trabalhar que a esquerda chegue unida em 2022”, afirma.

DW Brasil: Você foi selecionado pela revista Time como um dos 100 jovens líderes do mundo para o futuro. Qual é a importância dessa escolha?

Guilherme Boulos: Eu fiquei contente pelo reconhecimento, até porque se trata de uma revista liberal, que expressa um campo político diferente do meu. Quando até quem tem posições distintas reconhece o seu papel, isso merece ser notado. Aliás, a revista já fez isso com outras lideranças da esquerda e do campo progressista no Brasil e no mundo.

Como você lida com esse peso de ser alguém que pode liderar a esquerda brasileira nos próximos anos?

Eu milito há 20 anos no movimento social, junto com os sem-teto. Eu carrego há algum tempo esse peso de ser um uma das pessoas que representa a luta daqueles que não têm nada, que muitas vezes reviram o lixo para poder comer e não têm um teto para se abrigar. É uma responsabilidade para com os que estão no fundo do abismo social brasileiro. A inclusão na lista da Time não altera isso para mim, já que eu carrego comigo essa responsabilidade desde o início da minha militância, com as escolhas que eu fiz. E a compartilho com meus companheiros, pois ninguém consegue nada nem lidera sozinho.

Enquanto você insiste na criação de um programa comum dentro da esquerda antes de pensar em nomes para 2022, Lula não hesitou em “por o bloco na rua” com Haddad. Não seria mais interessante para você pavimentar um caminho independente dessa chancela do ex-presidente?

Não se trata de chancela. Eu sou militante do Psol, e não do PT. Eu construo meu caminho próprio ao lado dos meus companheiros em vista do modelo de esquerda e de país em que eu acredito. Trata-se de ter responsabilidade histórica. Não estamos em um momento de normalidade, em que cada um coloca seus projetos em cima da mesa, como se a democracia brasileira estivesse a plenos pulmões. Nós temos Bolsonaro presidente do Brasil, mais de 240 mil mortos na pandemia, um governo que acabou de liberar até 60 armas para frequentadores de clubes de tiros, a fim de formar milícias privadas para intervir caso ele perca em 2022.

O país está há cinco anos em uma profunda instabilidade institucional, onde as garantias individuais e as liberdades foram atropeladas inúmeras vezes. Nossa democracia está profundamente fragilizada. Em um momento como este, é preciso ter juízo. É papel da esquerda e de quem tem uma visão solidária e generosa de mundo colocar os interesses do país e nosso povo à frente de interesses individuais. Eu poderia lançar minha candidatura. Talvez, para mim, fosse mais vantajoso politicamente. Viajar o país e dialogar com as pessoas é algo que eu faço sempre, independente de ano eleitoral.

O Ciro Gomes lançou a candidatura dele em 2018. Agora, o PT sinalizou o lançamento do Haddad. Se eu e o Flávio Dino ou a Manuela D’Ávila, pelo PCdoB, decidirmos fazer o mesmo, chegamos a 2022 com quatro candidaturas do nosso campo. Quem ganha com isso? Do meu ponto de vista, o Bolsonaro. Esse peso eu não vou carregar, e irei trabalhar para que a esquerda chegue unida em 2022. Estou defendendo e dialogando com várias lideranças a construção de uma mesa de unidade e discuto um programa comum, que possa chegar eventualmente a uma candidatura única, por meio de prévias ou qualquer outra forma que gere consenso. Agora, se isso não for possível, cada um vai tomar seu rumo. Mas a tentativa deve ser feita.

Como você projeta o restante de 2021 para o Brasil?

As condições vão se deteriorar mais, lamentavelmente. O Brasil caminha para uma tempestade perfeita a partir do meio do ano. Primeiramente, pelo atraso na vacinação. Falta tudo. E olha que o país é referência internacional pelo Plano Nacional de Vacinação. Só que houve, nos últimos anos, um desmonte na área de ciência, pesquisa e inovação. O país está com o pires na mão, procurando insumos para vacinar o seu povo. Isso atrasou o processo. Dessa forma, dificultou também a recuperação econômica. Nós terminamos o ano passado com 14 milhões de desempregados. É o maior número da série histórica medida pelo IBGE, além dos 12 milhões de desalentados, que deixaram de procurar emprego pela falta de perspectiva.

A esse cenário se somam alguns fatores que compõem essa tempestade perfeita, a começar pelo auxílio emergencial, que virá menor, com um valor insuficiente até para colocar comida na mesa, e atendendo a menos pessoas do que no ano passado. Temos ainda a inflação de alimentos, pela subida internacional do preço das commodities, e a inflação de combustíveis. Podemos ter, ainda em 2021, um cenário de caos e convulsão social no Brasil, inclusive de violência.

Às vezes, o Bolsonaro antecipa o debate sobre as eleições do ano que vem, porque lhe interessa, mas uma parte da oposição também está com o pé e a cabeça em 2022. Estou muito preocupado em encarar 2021. A fome voltou nos interiores e periferias do país. Será exigida muita iniciativa da oposição, inclusive de rua, assim que for possível pelas condições sanitárias.

Sua campanha à prefeitura de São Paulo, em 2020, foi elogiada pela estratégia de comunicação nas redes. É possível dizer que a esquerda retomou espaço nessa arena, dominada inicialmente pelo bolsonarismo?

Quem primeiro soube utilizar as redes sociais para passar uma mensagem política, e com muita eficiência, foi a extrema direita. Isso não se deu só no Brasil, mas no mundo todo. Foi assim nos Estados Unidos, com Donald Trump, e no Reino Unido, com o Brexit. A extrema direita se organizou numa espécie de “internacional”. Eles trocaram ideologias e discursos. Basta ver que há inúmeros pontos de coincidência nos discursos de Trump, Bolsonaro e Viktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria). Isso gerou uma certa impressão, sobretudo no Brasil, de que a extrema direita seria a força hegemônica nas redes por um longo tempo. As eleições municipais do ano passado, sobretudo com a nossa campanha em São Paulo, ajudaram a mostrar que não necessariamente. Nós derrotamos o candidato do Bolsonaro na maior cidade do país. Ele tinha cinco vezes mais tempo de televisão do que a nossa candidatura. Conseguimos ir ao segundo turno e ter mais de 2 milhões de votos, sobretudo com um trabalho de redes sociais.

Muitas vezes, o que faltou para a esquerda era a disposição de furar a bolha, não pregar apenas para convertidos e usar uma linguagem que fosse compreensível por quem não era iniciado nos temas e textos desse campo. Assim como ser mais irreverente, saber utilizar mais o humor. Os temas que a esquerda traz, como a injustiça social e a pobreza, são sempre muito graves. Por vezes, não se encontrava outra maneira de dizer isso a não ser de uma forma dura, carrancuda, às vezes sombria. Nossa campanha não foi a primeira a usar bem as redes na esquerda, mas conseguimos mostrar que é possível levar nossos valores e causas populares de forma combativa e, ao mesmo tempo, com humor, com meme, dialogando com o diferente. Foi um exemplo interessante, e espero que a gente tenha a capacidade de manter isso ativo em 2022 para derrotar o projeto bolsonarista.

Quando você participou da eleição presidencial de 2018, havia comentários dentro da esquerda de que você se assemelhava ao Lula de 1989, mais sisudo. Você fez algum tipo de autocrítica nesse sentido?

Claro, eu fiz um balanço. A gente precisa aprender com os fatos, que estão aí para nos ensinar, e não para a gente contorná-los e continuar reforçando as nossas crenças. As eleições de 2018 tiveram um resultado catastrófico, e a extrema direita deu um banho de redes sociais em todos nós, mostrou que havia mudado o patamar de fazer campanha. Era como se os candidatos estivessem em relógio analógico, e o Bolsonaro, com relógio digital. Ficou evidente que se a gente não buscasse se apropriar e dialogar com essas ferramentas de diálogo de rede, humor, ironia, estávamos fadados a uma derrota de longo prazo. Nós tivemos essa compreensão, e sem nunca apelar para fake news. Pelo contrário, combatendo-as.

Entre 2018 e 2020, tivemos a ajuda de uma equipe para estudar e compreender o fenômeno. Em contraponto ao gabinete do ódio, que o Bolsonaro montou com dinheiro público no Palácio do Planalto, nós montamos o gabinete do amor. É um grupo de centenas de humoristas, designers, memeiros e tuiteiros que se organizaram voluntariamente na nossa campanha e, após a eleição, seguiram organizados para continuar esse trabalho. Eu tenho otimismo que a verdade possa vencer as fake news e, ao contrário do que aconteceu em 2018, a esperança e o amor possam vencer o discurso de ódio.

Pessoalmente, essa mudança de tom foi natural ou custosa para você?

Em uma entrevista, um debate na televisão, enfim, um palanque, você tende a ser mais formal, menos espontâneo. Assim como várias lideranças políticas, eu sempre preparei meus discursos. A gente fala para milhões de pessoas, seja por meio de uma tela, ou em grandes manifestações. Isso faz com que você chegue mais rígido. Ao longo da campanha, eu me desafiei a ser mais espontâneo, solto. Não precisei fabricar nada, colocar nenhuma maquiagem. A nossa equipe de comunicação foi de uma capacidade extraordinária e buscou fazer com que eu conseguisse despertar essa leveza e autenticidade nos momentos de expressão pública.

A periferia de São Paulo votou em João Dória contra Haddad em 2016, enquanto São Bernardo, berço político de Lula, elegeu Bolsonaro em 2018. A esquerda deixou de acompanhar transformações da sociedade brasileira, como o desejo de empreender no lugar da carteira assinada?

Ao mesmo tempo que a esquerda deve trazer à luz os acertos dos governos petistas, que retiraram milhões de pessoas da pobreza e da fome, precisa apontar os limites e se renovar para lidar com este mundo de 2021, que não é o mesmo do início do século. As mudanças são rápidas. Nesse sentido, devemos ser capazes de dialogar com as novas formas de relações econômicas. É preciso tomar cuidado com a cilada do empreendedorismo, que foi utilizado ideologicamente pelo neoliberalismo para embelezar o processo de precarização do trabalho. Nós não podemos aceitar a uberização e todas as formas de retirada de direitos como naturais. A destruição da legislação trabalhista colocou dezenas de milhões de trabalhadores à margem de qualquer proteção. Falo de jovens de 18 anos que ficam 12 horas por dia em cima de uma moto, sem direito à aposentadoria nem férias, recebem um salário que mal paga as contas no fim do mês, e são chamados de empreendedores.

Mas a esquerda deve estar atenta. Ao longo da campanha em São Paulo, nós construímos junto com motoristas e entregadores de aplicativos um programa de regulamentação para esse trabalho, que seria aplicado se ganhássemos. Uma parte importante deles não queria a carteira assinada, mas a liberdade de fazer sua própria jornada e trabalhar para mais de uma empresa simultaneamente. Eles disseram isso nos encontros. Só que, ao mesmo tempo, querem uma regulamentação mínima de direitos. A estabilidade via CLT não é a única possível, porque as formas de trabalho e as expectativas se diversificaram muito. Mas é preciso ter uma regulamentação que assegure direitos, senão vamos caminhar cada vez mais para uma escravidão moderna.

Uma esquerda do século 21 precisa considerar esta e outras questões, em diálogo com as periferias. Nossa economia se reprimarizou e, hoje, somos mero exportadores de soja, minério de ferro e gado. O Brasil não pode ser a fazenda da China e da Europa. Precisamos retomar a industrialização com investimentos em ciência e inovação, para aumentar o valor agregado da nossa pauta exportadora. É necessário discutir um novo modelo de desenvolvimento, sustentável no médio-longo prazo e alinhado ao debate internacional sobre o green new deal. De forma prioritária, devemos combater radicalmente as desigualdades. Nos governos do PT, a vida dos pobres melhorou muito, mas o lucro dos banqueiros também. Todos os países da OCDE taxam lucros e dividendos, mas o Brasil não. Precisamos enfrentar os grandes temas do país, que passam obrigatoriamente pelo enfrentamento do racismo estrutural.

Por João Pedro Soares, da Deutsche Welle

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