São Paulo

Cientistas denunciam desmonte da pesquisa ambiental em SP

"E a modernização que foi prometida nunca aconteceu", Patricia Bianca Clissa, presidente da APqC

Em agosto de 2020, durante a pandemia de covid-19, o Governo do Estado de São Paulo, alegando ajuste fiscal e economia de recursos para enfrentar a crise sanitária, levou a cabo uma reforma administrativa que aumentou impostos, extinguiu instituições públicas e afetou diversas áreas.

Uma das mais atingidas foi a das pesquisas ambientais, com a extinção de instituições e fusão de outras, o que veio a se somar à falta de pessoal nos institutos de pesquisa – 7.991 cargos estão vagos, segundo a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) –, devido a não realizações de concursos públicos há mais de 20 anos. Por isso, para muitos pesquisadores dos institutos extintos ou fundidos, não são meras alterações da estrutura de pesquisa ambiental, mas um verdadeiro desmonte.

Imagem mostra Fachada do Instituto Florestal de São Paulo
Fachada do Instituto Florestal, extinto pelo governo do Estado (Arquivo/Gov. do Estado de SP)

O sucateamento da área não é de agora, mas culminou com o Projeto de Lei (PL) 529/2020, encaminhado à Assembleia Legislativa em 13 de agosto de 2020, em regime de urgência, e aprovado em 15/10/2020, tornando-se a Lei 17.293/2020. O PL tinha como um dos objetivos a extinção de autarquias.

Conforme anunciado publicamente, o governo pretendia o fim da Fundação para Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo, ou Fundação Florestal (FF), atual responsável pela gestão de Unidades de Conservação no estado.

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Frederico Arzolla, pesquisador e presidente da CPRTI (APqC/Reprodução)

“Houve, no entanto, uma troca de instituições às vésperas da publicação do PL, sendo colocada a extinção explícita do Instituto Florestal [IF, órgão de pesquisa em conservação cuja origem remonta a 1911], e implícita por meio de uma fusão, dos Institutos de Botânica (IBt) e Geológico (IG)”, explica o engenheiro agrônomo Frederico Alexandre Roccia Dal Pozzo Arzolla, um dos autores do livro Diagnóstico da desestruturação da pesquisa científica ambiental e do sistema de áreas protegidas no Estado de São Paulo, Brasil, publicado pela APqC.

De acordo com ele, foi uma manobra política da própria Secretaria do Meio Ambiente na época, em 2020 – hoje Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil) –, que, em vez de defender esses institutos de pesquisa, “os entregou, sem direito à defesa, para a execução sumária”.

“Nesse contexto, o Instituto Florestal foi extinto”, lamenta. “Não houve consulta prévia à comunidade científica ou ambientalista, nem à população ou aos municípios e aos funcionários afetados por essa medida. Não foram realizadas audiências públicas, ou seja, o PL tramitou de forma urgente e autoritária. Nem mesmo o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) foi ouvido.”

Um novo órgão de pesquisa

Patricia Bianca Clissa, presidente da APqC (Leo Barrilari/Divulgação)

A presidente da APqC, Patrícia Bianca Clissa, acrescenta que a Lei 17.293/2020 determinou que o IF fosse extinto e que a parte da pesquisa científica fosse transferida aos outros dois institutos (IBt e IG), criando-se o atual Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), com o pretexto de economizar, “modernizar” e gerar interdisciplinaridade. “Foi uma falácia, pois o Instituto Florestal era superavitário”, critica.

“Mantinha-se em boa parte de seu orçamento com os subprodutos de suas pesquisas.”

Ainda segundo Clissa, o mesmo ocorria com o Instituto Geológico, pois recebia royalties. Já a interdisciplinaridade sempre existiu e estes institutos já “conversavam” entre si. “Ou seja, as interações entre os diferentes grupos de pesquisa científica deles aconteciam naturalmente, conforme as necessidades de se complementar as diferentes áreas de conhecimento, não de forma obrigatória ou imposta”, conta. “E a modernização que foi prometida nunca aconteceu, pois a falta de funcionários já era grande antes da extinção e nada foi feito para mudar isso.”

Ao contrário, acrescenta Clissa, a situação se agravou, pois com a fusão houve um estímulo para as aposentadorias, acentuando e aumentando o problema da falta de funcionários (cientistas, técnicos, pessoal administrativo e pessoal de apoio). “Não há concursos para essas instituições há mais de 20 anos”, diz. “Com a nova lei, a estrutura da pesquisa foi desmontada. Mais de 50 núcleos ou seções de estudos das três instituições foram reduzidos a somente quatro, resultando na desorganização e desestruturação da pesquisa.”

Segundo o biólogo Felipe Zanusso Souza, outro dos autores do livro do qual participou Arzolla, essa é uma situação complexa, que tem favorecido a desconstrução do corpo técnico estatal da área de meio ambiente de São Paulo, incluindo o vinculado à pesquisa. “Essa falta de pessoal afeta diretamente a estabilidade dos serviços e as capacidades de implementação das políticas públicas”, critica. “Tanto os setores técnicos como aqueles administrativos, de recursos humanos, financeiros e de logística são atingidos pela precarização das condições de trabalho.”

De acordo com ele, como alternativa, o governo tem ampliado o número de cargos comissionados e a contratação de empresas que oferecem mão de obra terceirizada. “No entanto, existem diversas evidências de que essa estratégia, além de mais onerosa aos cofres públicos, é instável e inadequada para as atividades-fim”, diz.

Souza cita o Relatório do Grupo de Trabalho de Modernização dos Institutos de Pesquisa da SMA, publicado em julho de 2018, segundo o qual “nos últimos seis anos (2013-2018) houve uma drástica redução dos recursos do Tesouro. As instituições nesse período tiveram que recorrer cada vez mais ao Fundo Especial de Despesa para arcar com os dispêndios com atividades-meio”.

Pioneiro da conservação

Em relação especificamente ao IF, a bióloga Marilda Rapp, que foi pesquisadora da instituição, diz que ele foi pioneiro na área de pesquisa voltada à conservação ambiental em São Paulo, tendo sido responsável pela criação de quase todas as Unidades de Conservação de proteção integral do estado, que abrangem quase 1 milhão de hectares. “Se hoje São Paulo tem Unidades de Conservação públicas que representam a maior parte de área verde do interior e litoral do Estado, isso se deve ao Instituto Florestal”, diz.

De acordo com ela, diferentemente dos outros estados, em que a maior parte das áreas florestais importantes são federais, em São Paulo elas são estaduais, “e isso graças ao Instituto Florestal e seu histórico de conservação e pesquisa ambiental”. “O IF fazia pesquisa na área florestal e exportava conhecimento para o resto do Brasil e exterior através de cursos, congressos, publicações”, diz Rapp.

Além disso, o instituto elaborava os planos de manejo das Unidades de Conservação e as administrava, além de fazer experimentação florestal e pesquisas com espécies exóticas e nativas com finalidade econômica e de melhoramento genético. Também realizava estudos sobre a fauna nativa, espécies ameaçadas e qual o tamanho mínimo que uma Unidade de Conservação deve ter para melhor preservação da fauna. O impacto do ecoturismo também era tema de análises.

Mas não foi só isso que se perdeu com sua extinção. “O Instituto Florestal tinha um nome reconhecido internacionalmente na área de pesquisa ambiental”, diz Rapp. “Essa identidade foi perdida. Além disso, o IF possuía um acervo científico enorme. Produzia uma das poucas revistas científicas brasileiras na área de ciências florestais que abrangia diferentes tópicos e que, por ser reconhecida internacionalmente, era muito procurada para publicação de artigos tanto por pesquisadores do exterior como de todo o Brasil. Agora a procura para publicação na revista está prejudicada devido à perda do nome da instituição.”

De acordo com Souza, o diagnóstico abordado no livro mostra que, com a extinção e fusão dos institutos, as propostas e ações da secretaria no período analisado não foram de longo prazo e desconsideraram a origem da cultura institucional das suas organizações. Ao contrário, as estratégias adotadas por “dirigentes sem capacidade e conhecimento adequados a respeito das questões ambientais para coordenar a pasta” agravaram os conflitos e crises.

Além disso, “a politização e valorização dos aspectos partidários em detrimento do aspecto técnico” reduziram a qualidade e a profissionalização dos serviços oferecidos à sociedade. “O predomínio da dimensão política causou um desequilíbrio com a técnica, refletindo-se em ações de gestão negativas para a sociedade”, explica Souza. “Ao mesmo tempo, verificamos uma redução dos espaços de participação e de controle social. Em decorrência, diretrizes para a conservação da natureza foram postas de lado.”

Clissa, por sua vez, lembra que o mundo está diante de um cenário de mudanças climáticas, com o aumento da frequência e magnitude de eventos extremos e de escassez hídrica, ao que se somam o desmatamento de áreas de Cerrado e Mata Atlântica e ainvasão por espécies exóticas. “Há um cenário catastrófico que só poderá ser enfrentado com o fortalecimento dos institutos de pesquisa em matéria ambiental de nosso estado, para o monitoramento e embasamento das ações de enfrentamento pelo Poder Público estadual desses processos”, alerta.

Procurada, a Semil se manifestou por meio da seguinte nota:

O Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), órgão vinculado à Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil), esclarece que as atividades dos Institutos Florestal, Geológico e de Botânica foram reorganizadas no Instituto de Pesquisas Ambientais, criado por meio do Decreto 65.796/2021, sem prejuízo às atividades que eram realizadas anteriormente.

A reforma administrativa imprimiu maior eficácia às ações em especial por agregar pesquisadores que atuavam nas mesmas linhas, mas dispersos em três institutos distintos. Todas as pesquisas em andamento foram incorporadas, aperfeiçoadas e continuam sendo executadas.

Importante destacar que a reorganização não implicou em demissões ou em alteração de função para os 140 pesquisadores científicos especialistas nas ciências florestais, ecologia, botânica e geociências, e aproximadamente 300 outros servidores, que seguem mantidos na atual estrutura.

A Semil tem trabalhado para fortalecer a estrutura do IPA e promover um ambiente propício ao desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação, o que é demonstrado pelos investimentos realizados nas estruturas laboratoriais e de pesquisa, especialmente este ano.

A secretaria reconhece a importância da pesquisa pública e o papel fundamental que esta desempenha no avanço do conhecimento e no desenvolvimento científico e tecnológico de São Paulo, assim como compreende e compartilha a importância de renovar e fortalecer os quadros técnicos do Estado.

Reportagem publicada originalmente pela Mongabay.

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