Suicídio de jovens dobra e especialistas pedem políticas públicas para evitar casos
Transtornos mentais passaram a receber mais atenção durante a pandemia de covid-19, mas, bem antes da chegada do coronavírus, dados estatísticos já deixavam claro haver uma curva ascendente perturbadora no Brasil, em especial entre jovens de 11 a 20 anos.
Dados compilados pela insurtech (startup do setor de seguros) Azos – a partir de cruzamento de informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com a base histórica de mortes disponibilizada pelo governo federal – apontam que, num período de cinco anos (2014 a 2019), o número de suicídios de jovens nessa faixa etária dobrou no país.
A Azos aguarda a divulgação de dados do Ministério da Saúde sobre 2020 para agregá-los à base, mas não há dúvidas de que, com a pandemia, esse cenário tornou-se ainda mais grave.
O tema já era alvo de preocupação constante da Organização Mundial da Saúde (OMS). Antes da pandemia, a OMS estimava que um em cada cinco adolescentes no mundo enfrentava desafios de saúde mental. No Brasil, entre os jovens de 15 a 29 anos o suicídio foi a quarta causa de morte depois de acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal, de acordo com relatório da OMS divulgado em 2019.
Somado aos dados sobre suicídio, há ainda a elevação significativa da violência autoprovocada entre jovens de 15 a 29 anos, como já havia detectado o próprio Ministério da Saúde em boletim epidemiológico divulgado em 2019: mais de 45% dos casos de autolesão e automutilação no país ocorreram nessa faixa etária na última década. E mais: do total de lesões autoprovocadas, em 2018 (o dado oficial mais recente), 40% foram registradas como tentativas de suicídio.
Necessidade de políticas públicas sólidas
O tema da saúde mental ganhou destaque no mês de setembro, com a campanha do Setembro Amarelo, para conscientização sobre suicídio e contra a psicofobia (preconceito contra as pessoas que apresentam transtornos e/ou deficiências mentais).
No entanto, profissionais da saúde no Brasil afirmam serem necessárias a implementação e ampliação de uma rede de atendimento permanente e eficaz de políticas públicas sólidas que possam auxiliar os jovens a enfrentar situações de sofrimento mental ao longo dos próximos anos.
A base de dados da Azos, afirma Bernardo Ribeiro, diretor de marketing e sócio-fundador da insurtech, pode auxiliar na elaboração de políticas públicas. “As estatísticas sobre suicídios nos assustaram, e é preciso entender melhor as causas”, diz.
William Chung, cientista de dados da empresa, passou três meses reunindo informações oficiais para estruturar a base de dados. “O dado, por si só, não diz nada. Precisamos formular hipóteses. O que impactou esse fenômeno no Brasil?”, questiona. Para os integrantes da insurtech, cabe aos profissionais da saúde e especialistas em políticas públicas buscar respostas e tentar reverter a curva ascendente no país.
“Não estamos conseguindo reduzir as taxas de suicídio”
De acordo com o vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Cláudio Meneghello Martins, houve “ampliação significativa de sintomas psiquiátricos no período de pandemia”. Porém, desde 2014, explica ele, a ABP se engaja na campanha do Setembro Amarelo por entender o suicídio como questão de saúde pública.
“Temos conseguido reduzir as taxas de mortalidade por câncer e por doenças cardiovasculares, por exemplo, pelos avanços significativos nos tratamentos e diagnósticos precoces. Mas as taxas de suicídio não estamos conseguindo reduzir”, afirma Martins.
“No Brasil, há cerca de 13 mil mortes por ano de casos notificados. Sabemos que o suicídio é subnotificado por vários fatores – culturais, políticos, de seguro. É uma taxa muito alta. A OMS já diz que no mundo há um suicídio a cada 40 segundos”, aponta.
Os profissionais da saúde no Brasil, em especial os psiquiatras, afirma o vice-presidente da ABP, precisam lutar continuamente contra a estigmatização da doença mental. “Vários segmentos da sociedade têm muita resistência em buscar orientação. Temos ampliado o número de assistência e precisamos buscar sensibilizar as políticas [públicas de atendimento].”
“Transtornos mentais se desenvolvem a partir de um conjunto de fatores, de causas, como predisposição genética, vivências infantis, fatores estressores precoces, como maus-tratos, negligência, dificuldades nutricionais”, explica Martins.
A pandemia amplificou os chamados fatores estressores, gatilhos significativos para o desenvolvimento de transtornos mentais. “Alterações comportamentais, de relações intrafamiliares, de relações laborais, as dificuldades financeiras e educacionais, enfim, há um conjunto de situações ambientais que impactaram a humanidade e evidentemente a nossa realidade com a covid-19. O próprio medo da doença, de ela ser instalada no núcleo familiar, já é fator estressor”, diz o vice-presidente da ABP.
Fenômenos perenes da adolescência
Euclides Colaço, médico de família e comunidade especializado em psiquiatria e saúde mental, diz ser perceptível o boom de casos de automutilação e suicídio entre jovens a partir do primeiro semestre de 2020.
“São dois fenômenos que têm ficado perenes na adolescência e juventude. Até a década de 80, a idade média de suicídio oscilava em torno de 30 anos. Hoje em dia a idade caiu mais, na faixa de 20 anos”, lamenta o especialista, que também é professor de medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais.
“Na minha prática cotidiana, acompanho casos de sofrimento mental de todos os tipos e faixas etárias. A automutilação, muito ligada à questão do suicídio, tem aumentado brutalmente. Percebo desde 2015, 2016, um aumento do número de professores que procuram a procurando UBS (Unidade Básica de Saúde) para dizer que estão com dificuldades para lidar com situações desse tipo nas escolas”, diz Colaço.
O professor enfatiza que a desestruturação familiar é um dos fatores que pode desencadear os transtornos mentais. Segundo ele, é também visível a falta de estímulos positivos e perspectivas para os jovens no Brasil. “Principalmente para os mais vulneráveis. Geralmente eles só têm o ambiente da escola e de casa. Fora disso, não têm perspectiva de nenhuma outra atividade que os estimule. Ficam muito absortos só em informações na internet.”
Lançado em junho deste ano, o Atlas das Juventudes e de novos estudos da FGV Social confirma o desalento, insatisfação, frustração e falta de perspectivas de jovens, sobretudo entre 15 a 29 anos: dos 50 milhões de brasileiros nessa faixa etária, 47% querem deixar o país.
Efeitos do mundo virtual
O mundo virtual pode alimentar um vazio e uma frustração com a qual os jovens não sabem lidar, acrescenta Colaço. Em seus atendimentos, o médico diz ver muitos casos de depressão e ansiedade em crianças e adolescentes, transtornos de comportamento e personalidade, “algo em que não pensaríamos há 20 anos”. Em muitos casos, esses transtornos aparecem associados ao uso de entorpecentes, álcool e drogas, acrescenta.
Fenômenos contemporâneos, como o cyberbulling, a sexualização cada vez mais precoce, as influências digitais e um debate público sobre questões de gênero também estão relacionados aos transtornos mentais de crianças e adolescentes, explicam os especialistas. Para o médico Euclides Colaço, isso torna imprescindível um trabalho em rede, envolvendo as escolas e os profissionais da saúde.
Segundo o vice-presidente da ABP, é preciso ampliar e integrar toda a rede ambulatorial no país, pois muitas vezes a porta de entrada, onde se busca um primeiro atendimento, é o posto de saúde. O psiquiatra pontua que a demora no atendimento e a falta de acolhimento adequado aumentam os riscos de um desfecho trágico.
“Se a gente demora para fazer assistência, os sintomas vão se agravando. Se uma pessoa tem uma dor anginosa, por exemplo, isso pode se ampliar, e ela pode ter um infarto fulminante e morrer. Se os transtornos depressivos se prolongam, a sintomatologia também se agrava”, compara Martins.
Desafio brasileiro
Oficial de Desenvolvimento e Participação de Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, Joana Amaral disse à DW Brasil que a reversão de indicadores de morte por suicídio e violências autoprovocadas de adolescentes e jovens no país se tornou uma das prioridades da entidade.
“O aumento é significativo, e temos acompanhado com muita preocupação esses comportamentos.” Um grupo de trabalho nacional, criado em 2018, tem refletido sobre o que está acontecendo no Brasil e sobre quais são as causas de agravamento desse cenário. Em 2019, foi lançado o Plano Nacional de Enfrentamento a Mutilações e Suicídios, que contou com apoio do Unicef Brasil e organizações do terceiro setor.
O contexto atual, acrescenta a oficial do Unicef, exerce forte influência nos transtornos mentais. “É importante a gente começar a pensar de que adolescências estamos falando. Temos um Brasil muito diverso, e para o Unicef é importante colocar isso na análise, as diferenças regionais, as diferentes estratégias de enfrentamento ao suicídio, pensar em situação socioeconômica, diferentes idades, raças e gênero, e como tudo isso reflete no comportamento de adolescentes e jovens”, pontua.
As políticas públicas atuais, diz ela, não têm comportado o aumento gradual da demanda por atenção psiquiátrica especializada. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do SUS, é elogiada por especialistas, mas há muitas lacunas a serem contornadas. Amaral cita, por exemplo, o fato de muitos pequenos municípios brasileiros não terem os chamados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e muito menos o CAPSi, voltado ao público infanto-juvenil.
O Unicef tem desenvolvido políticas preventivas de acolhimento a essas crianças e adolescentes. A principal iniciativa recente é o espaço virtual, com três canais: Quero me cuidar, Quero me inspirar, Quero falar. O espaço oferece informações, testes de ansiedade, baralho para falar do suicídio, depoimentos inspiradores de adolescentes que contam situações que estão vivendo e como tentam superá-las, além da possibilidade de um primeiro atendimento psicológico virtual com encaminhamento para a rede pública se necessário.
“A ideia é que se tenha um espaço livre, seguro, sem julgamentos, de escuta empática, em que se possa oferecer alternativas”, diz Amaral. De março até agora já foram mais de 29 mil acessos, concentrados na faixa etária de 15 anos.
Superar preconceitos, tabus e capacitar profissionais da saúde pública e da educação para lidar com o sofrimento mental de crianças e adolescentes é um grande desafio brasileiro.
Por Malu Delgado, da Deutsche Welle
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Se você enfrenta problemas emocionais e tem pensamentos suicidas, não deixe de procurar ajuda profissional. Você pode buscar ajuda neste site: https://www.befrienders.org/portugese