Variante mutante de coronavírus no Amazonas intriga cientistas
Depois de o Japão identificar uma nova variante de coronavírus em viajantes que estiveram no Amazonas, o estado confirmou nesta quarta-feira (13/01) que a mesma cepa é responsável pelo primeiro caso de reinfecção em seu território.
Foram pesquisadores da Fiocruz Amazônia, em Manaus, que fizeram o sequenciamento genético do vírus coletado no paciente brasileiro. Após a comparação com o resultado do teste feito na primeira ocorrência da doença na mesma pessoa, os cientistas concluíram que a nova linhagem era responsável pela reinfecção.
Numa corrida contra o tempo e com recursos financeiros limitados, a instituição tenta identificar o momento exato em que o vírus sofreu as novas mutações e se essas características são responsáveis pelo recrudescimento da pandemia no estado. Com hospitais e cemitérios em colapso e relatos de falta de oxigênio, o Amazonas registrou mais de 5.800 mortes por covid-19 até esta quarta-feira.
Em entrevista à DW, o pesquisador Felipe Naveca, virologista e pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane da Fiocruz Amazônia, explica por que o sequenciamento genético constante do vírus é uma importante ferramenta para conter a pandemia. “Se a gente identificar uma variante que escape da vacina, isso aconteceu em outras situações, a vacina terá que ser modificada pra poder conter. Mas se a gente barrar a circulação do vírus, a gente aumenta as chances de isso não acontecer”, alerta.
Sem respostas claras, algumas medidas para barrar a circulação no vírus mutante foram tomadas em diversos locais. O estado vizinho, Pará, proibiu circulação de barcos vindos do Amazonas e o Reino Unido proibiu voos procedentes do Brasil.
DW Brasil: Como começou essa busca por vestígios da nova variante do coronavírus que teria sofrido mutação no Brasil? Vocês já estavam investigando isso ou o alerta veio das autoridades japonesas?
Felipe Naveca: Desde março de 2020 a gente fazia o sequenciamento genético das linhagens do coronavírus no Amazonas. Nós fizemos a primeira identificação no Norte do país, que foi um caso que veio da Espanha.
No último domingo, quando os pesquisadores japoneses notificaram o governo brasileiro desses casos que chegaram lá, nós fomos investigar as sequências genéticas japonesas e comparamos com as sequências genéticas de amostras de pacientes do Amazonas feitas em novembro, e que havíamos acabado de fazer.
Quando comparamos, tomamos um susto ao ver que, sim, comprovava que a sequência encontrada no Japão tinha um ancestral no Amazonas. Fechava todo o vínculo epidemiológico e genético.
Como tínhamos sequências genéticas de pacientes até novembro, não tínhamos no nosso banco de dados as mutações específicas que eles encontraram e que chamaram muito a atenção. Temos um buraco entre final de novembro e início de janeiro, que é de quando as sequências japonesas são.
Independente disso, a gente já estava programando o sequenciamento genético de amostras recolhidas de pacientes de dezembro. Por conta dessa situação urgente, a gente começou a preparar no laboratório o sequenciamento de janeiro pra sabermos com que frequência essa variante está circulando.
O que mais chamou a atenção nessas variante e que está causando preocupação?
Muito interessante e preocupante ao mesmo é que essa variante identificada no Japão, que vem da linha que já circulava aqui, tem mutações em regiões muito importantes do vírus. É uma região chamada de 484 e 501 da proteína Spike (ela tem forma de coroa, que dá nome à família dos coronavírus).
Essas duas mutações identificadas no Japão já foram associadas, em outros estudos na África do Sul e na Inglaterra, a um aumento de transmissão.
A mutação acontece porque o vírus está sendo replicado milhões de vezes dentro do corpo de uma pessoa. E os erros nessa replicação acontecem. Só que esse processo ocorre em milhões de pessoas ao mesmo tempo, as chances de mutações aumentam exponencialmente. Quanto mais pessoas infectadas, mais o vírus evolui.
Um estudo recente da USP conseguiu mostrar que a mutação identificada no Reino Unido deu ao vírus uma capacidade de se “ligar” com maior eficácia na célula humana. Isso também valeria para essa cepa do Amazonas?
Isso. Toda a mutação na proteína Spike chama bastante atenção, ainda mais se for no domínio de ligação com o receptor da célula humana. E foi justamente onde aconteceram as mutações.
Na linhagem japonesa, além dessas duas mutações, existem outras. Na verdade, essa cepa tem muitas mutações. A gente ainda precisa entender como essa variante acumulou tantas mutações em tão pouco tempo.
Qual a provável explicação pra isso? Com quais hipóteses vocês estão trabalhando?
Há algumas hipóteses. Tudo indica que se trata de um fenômeno chamado de convergência evolutiva. Isso quer dizer que não foi necessariamente a linhagem inglesa ou africana que vieram pra cá: elas evoluíram aparentemente de forma independente. E evoluíram nos mesmos pontos. Isso chama muito a atenção.
As hipóteses lançadas é de que a mutação pode ser sido fruto de infecção de pessoas imunossuprimidas, como, por exemplo, pessoas com HIV, ou em tratamento de câncer… Quando o sistema imune não consegue combater a infecção, o corpo acumula mais ciclos de replicação do vírus, o que dá a ele mais chances de mutar. A gente já viu isso em outros vírus.
De qualquer maneira, o que a gente está vendo é o vírus circular de uma maneira quase que incontrolável. Quanto mais pessoas ele infecta, maiores as chances de mutações.
Já se sabe se a mutação do Amazonas é mais contagiosa que o vírus original, ou se causa casos mais graves de covid-19?
Sobre causar um quadro mais grave da doença nenhum resultado ainda apontou isso, em nenhum país. Mas as evidências que temos em laboratório e também por conta do vínculo epidemiológico no Reino Unido e na África do Sul é que a transmissão é maior, sim.
Às vezes, quando o vírus assume essa característica de ser mais transmissível, ele acaba diminuindo vantagens pra ele em outra circunstância. Por exemplo, ele pode ser até mais infeccioso, mas não ser mais letal.
Já dá pra saber se é essa cepa que está provocando esse aumento vertiginoso de casos no Amazonas que temos visto nos primeiros dias de 2021?
Ainda não dá. É por isso que a gente precisa sequenciar as coletas de vírus dos pacientes nesse intervalo, de dezembro e janeiro. E sequenciar muitas vezes pra saber em que momento isso aconteceu e qual é a frequência disso agora.
Foi decido em várias reuniões aqui, com autoridades da vigilância sanitária, que temos que sequenciar as amostras dos casos mais graves. Assim a gente vai conseguir ver se a essa variante está circulando e se a frequência é maior em casos graves, ou não.
Vocês vão receber algum apoio pra fazer esse trabalho? Como está a rotina do trabalho?
Não sabemos, mas esperamos receber um apoio financeiro pra podermos fazer mais. Comigo, somos dez pessoas trabalhando no laboratório na Fiocruz. Só que esse mesmo grupo faz o diagnóstico dos pacientes e o sequenciamento genético. Há dias em que só conseguimos fazer diagnósticos, que é a prioridade, a gente tem que dar essa resposta para o paciente, se ele está ou não infectado.
No ano passado, quando estávamos na pior época, abril e maio, interrompemos todas as pesquisas e ficamos mais de três meses só fazendo diagnóstico. Ficamos sobrecarregados. Nós não somos um laboratório de rotina de exames, isso trouxe um impacto muito grande. Viramos noites, fizemos escalas, mas aquilo era prioridade.
Por que, nesse momento crítico da pandemia, é tão importante fazer sequenciamento genético do vírus coletado dos pacientes infectados?
Há um ponto que é muito imediato. Quando foram feitos os primeiros protocolos de PCR em tempo real, que é exame padrão ouro feito para dar o diagnóstico de covid-19, ele foi baseado na sequência genética gerada incialmente no vírus coletado em Wuhan, na China, onde começou a epidemia.
Mas o vírus foi acumulando mutações, e a gente não sabe onde essas mutações vão se fixar ao longo do tempo. Pode acontecer de uma mutação dessa ocorrer justamente no local de reconhecimento do PCR em tempo real. Se isso acontecer, o exame que a gente faz não funciona mais, o resultado será um falso negativo.
Então a gente precisa estar sempre sequenciando pra ver onde acontecem as mutações e ver se esse protocolo precisa ser reajustado. A gente já viu isso acontecer.
O segundo ponto: com informação genética, informação epidemiológica, data e local de coleta, a gente consegue rastrear a trajetória do vírus com muita precisão. Se você não faz o sequenciamento genético, você só sabe o número de casos.
De qualquer maneira, seja um vírus mutante ou vírus original, se as pessoas tomarem os cuidados de distanciamento, máscara, lavagem das mãos e uso de álcool em gel, elas se previnem do mesmo jeito. E se a gente toma os cuidados, a gente desacelera a velocidade de evolução do vírus. E a população pode nos ajudar num momento como esse.
Essas mutações podem ser um obstáculo para que as vacinas já desenvolvidas funcionem?
Se a gente identificar uma variante que escape da vacina, isso aconteceu em outras situações, a vacina terá que ser modificada pra poder conter a epidemia. Mas se a gente barrar a circulação do vírus, a gente aumenta as chances de isso não acontecer.
Por Nádia Pontes, da Deutsche Welle