Abin produziu relatórios para Flávio Bolsonaro, diz revista
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu ao menos dois relatórios para o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, com informações e estratégias para a sua defesa no processo em que ele é acusado de receber parte do salário de funcionários de seu gabinete, conhecido como rachadinha, segundo reportagem publicada nesta sexta-feira (11/12) pela revista Época.
Nos relatórios, enviados em setembro para o senador, a Abin, órgão do governo federal vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), relata o funcionamento de uma suposta organização criminosa dentro da Receita Federal para acessar ilegalmente dados fiscais do senador, que embasaram a abertura de inquérito para apurar a prática de rachadinha na época em que ele era deputado estadual do Rio de Janeiro, com o auxílio de Fabrício Queiroz. O senador foi denunciado em novembro pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.
A autenticidade dos documentos foi confirmada à revista por uma advogada de Flávio Bolsonaro, Luciana Pires, que se recusou a comentar seu conteúdo. Em 25 de agosto, o diretor da Abin, Alexandre Ramagem, havia recebido da defesa do senador uma petição solicitando uma “apuração especial” em busca de provas que sustentassem a suspeita de que ele teria sido vítima de ilegalidades de servidores da Receita, segundo a Época.
O general Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI, posteriormente declarou que não havia mobilizado o aparato de inteligência do governo para defender o filho do presidente. Em nota à revista, o GSI negou que a Abin tenha produzido os relatórios.
Ramagem é homem da confiança de Bolsonaro e chegou a ser nomeado em abril para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal, ato suspenso pelo Supremo Tribunal Federal devido a indícios de desvio de finalidade por parte do presidente.
A demissão do ex-diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, para que Ramagem assumisse o cargo foi o estopim da saída do governo do então ministro da Justiça, Sergio Moro, que acusou Bolsonaro de tentar interferir politicamente no órgão.
“Linha de ação”
Um dos relatórios ao qual a revista teve acesso tinha como finalidade “Defender FB no caso Alerj [Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro] demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB [iniciais de Flávio Bolsonaro]”.
O texto estabelece como “linha de ação” a “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O documento ressalva que os registros dos acessos aos dados fiscais de Flávio Bolsonaro já poderiam ter sido “adulterados”, devido à atuação de uma “estrutura criminosa” na Receita Federal que já estaria ciente da estratégia de defesa do senador.
No relatório, a Abin faz imputações de que servidores da Receita fariam parte dessa organização, e menciona os nomes do ex-secretário do órgão, Everardo Maciel, e do atual secretário da Receita, José Tostes Neto, além do corregedor da Receita, José Barros Neto, e do corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior.
O texto também sugere que “postos” da Receita sejam substituídos, em possível referência a servidores do órgão, e diz que já havia feito essa recomendação em 2019 em “relatório anterior”.
CGU e AGU em defesa de Flávio
Para obter os dados de interesse do senador, a Abin sugere uma estratégia que incluiria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).
Segundo o relatório, o caminho seria, com base em uma representação protocolada pela defesa de Flávio Bolsonaro à Receita Federal, a instauração de uma sindicância pela CGU para apurar fatos sobre a Corregedoria e Inteligência da Receita Federal, que requisitaria uma “apuração especial” ao Serpro.
Se o Serpro se negasse a efetuar a apuração por causa do sigilo profissional dos servidores, o relatório sugere que a CGU solicite à AGU que entrasse no circuito, judicializando o caso. A defesa de Flávio Bolsonaro, por sua vez, deveria pedir acesso à CGU aos autos da apuração especial, “visando instruir Representação ao PGR [Augusto] Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”.
“Em resumo, ao invés da advogada [de Flávio Bolsonaro] ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo”, afirma o relatório. O texto também sugere que Jair Bolsonaro demita Waller Júnior do cargo de corregedor-geral da União e nomeie para o seu lugar um ex-policial federal de sua confiança.
Pedido de exoneração de servidores
O segundo relatório da Abin enviado a Flávio Bolsonaro, revelado pela Época, estabelece três ações para obter os documentos que ajudariam o senador em sua defesa no processo.
Primeiro, “A dra. Juliet [provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio Bolsonaro] deve visitar o [secretário da Receita] Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”.
Depois, a defesa do senador deveria enviar uma petição ao chefe do Serpro solicitando as informações da apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação, o que acabou sendo feito pelos advogados de Flávio Bolsonaro. O pedido, porém, deveria ser feito por escrito, e não de forma eletrônica, para evitar ser acessado por servidores da CGU.
Ao final, o relatório sugere a exoneração de três servidores da Receita Federal de seus cargos de direção e assessoramento para a “neutralização (…) do grupo criminoso da RF”.
Os servidores são o corregedor José Barros Neto, o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem, e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes. Segundo a Época, Paes solicitou a exoneração de seu cargo na semana passada.
Repúdio
Após a divulgação da reportagem, o Sindifisco Nacional, sindicato que representa auditores fiscais da Receita, divulgou nota afirmando que as informações divulgadas, caso confirmadas, são inaceitáveis.
“O fato é inaceitável em todos os sentidos. Se não bastasse a gravidade de se ter uma agência de inteligência mobilizada para defender o filho do presidente da República, acusado de atos ilícitos, como a rachadinha na Alerj, não se pode admitir que um órgão de governo busque interferir num órgão de Estado, protegido pela Constituição Federal, sugerindo o afastamento de servidores públicos”, diz a nota.
BL/ots
Por Deutsche Welle