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‘A Filha da Mãe’ desconstrói visão romantizada sobre a maternidade

Joana Dória em cena (Diogo Nazaré/Divulgação)

Realizado inteiramente por mulheres, o espetáculo A Filha da Mãe, texto inédito de Livia Piccolo, está em cartaz no Viga Espaço Cênico, em curta temporada até 30 de junho. Com atuação de Joana Dória, a peça fala sobre a condição materna nos dias de hoje, desvinculando-a do idealismo e do romantismo que cerca o assunto. Para isso, atravessa temas como o patriarcado, o aborto, o feminismo e a morte.

O projeto nasceu do encontro entre essas duas artistas e mães e marca a primeira direção teatral de Livia Piccolo. Ela começou a escrever as primeiras palavras do texto em 2016, pouco depois do parto de seu filho. “Não se trata de um relato autobiográfico ou filiado ao teatro documentário, mas sim de um texto ficcional que metaboliza referências estéticas e experiências reais do processo de tornar-se mãe”, explica.

A trama acompanha as aflições, questionamentos e dificuldades de uma mãe em três momentos de sua vida: o parto e os primeiros dias de maternidade com a sua filha, a morte de sua mãe e o aniversário de 30 anos da filha já adulta. Cada uma dessas etapas é narrada com características performativas diferentes. Por exemplo, na primeira parte, a linguagem tem caráter lírico e oral, representado pelo Spoken Word e textos em fluxo. O segundo momento é mais dramático e o terceiro em forma de cartas que a mãe escreve para a filha.

A autora Livia Piccolo conta sobre como surgiram esses três momentos no texto: “O primeiro momento escrevi em um lugar muito quente, elaborando a experiência do meu parto, que foi intenso, natural e desejado. Esse registro começou quase como um desabafo, mas depois foi se distanciando da minha experiência pessoal. Enquanto escrevia sobre isso, tive a ideia de falar sobre o fim da vida. E por que não falar do término da vida da mãe dessa personagem? A partir do momento que ela se torna mãe, passa a repensar a história com a própria mãe. Acho que essa é uma experiência comum na maternidade. Você começa a valorizar mais sua mãe ou a pensar naquilo que gostaria de fazer diferente. E o terceiro momento, que é dessa personagem mais velha, veio das referências literárias que eu metabolizei no texto. As principais foram os livros da Elena Ferrante, que retrata mulheres de diferentes idades, e de outra escritora italiana, a Natalia Ginzburg, sobretudo o romance ‘Caro Michele’, sobre uma mãe mais velha que escreve cartas para seu filho. O livro Monodrama, do poeta Carlito Azevedo, onde ele fala da morte de sua mãe, também foi bem importante.”

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(Diogo Nazaré/Divulgação)

A peça transita entre a materialização do ambiente doméstico e os vestígios dos pensamentos e memórias da personagem, convidando o público a uma experiência de desconstrução e desnudamento de ideias pré-concebidas sobre o que é ser mãe. A ideia é revelar aspectos concretos e pouco discutidos na vida das mulheres, como a solidão, o aborto como uma escolha real, a depressão pós-parto, as mudanças físicas e sociais, a reorganização dos sonhos a partir da notícia da gestação, o mito do amor materno, as dificuldades e os abusos de uma sociedade que não as acolhe.

Para a atriz Joana Dória, a maternidade contemporânea é mais acompanhada pelo sentimento de solidão em relação ao passado. “Tenho a sensação de que antigamente os núcleos familiares eram maiores e o cuidado com crianças, bebês e idosos era mais compartilhado. Por outro lado, o discurso social e cultural dizia que o cuidado com os filhos era responsabilidade exclusiva da mulher. Hoje, as mulheres almejam muitas coisas e questionam muito mais a maternidade como a principal realização feminina. Acho curioso que tenhamos uma aparência de maior liberdade – queremos ser profissionais bem-sucedidas, queremos nos realizar em outras áreas e a sociedade já defende a ideia de que o pai precisa ser de fato presente e responsável –, mas, ao mesmo tempo, estamos atribuladas de muitos desejos e demandas. É difícil equilibrar tudo isso. Sinto que a maternidade contemporânea é atravessada pelas muitas frentes das quais as mulheres estão tentando dar conta e por um tanto de solidão. Acho que esse sentimento sempre existiu, mas talvez esteja mais exposto agora que falamos sobre isso em muitos grupos de mães, redes sociais e textos de internet”, esclarece.

A encenação adota como duas principais referências a experiência da diretora Livia Piccolo com a maternidade e o ensaio “Mother Series”, da premiada fotógrafa holandesa Rineke Dijkstra. “A primeira referência é a minha experiência como mãe e o que aconteceu no meu ambiente doméstico. A minha casa passou a ficar muito desorganizada. Aconteceu todo um rearranjo dos objetos e dos espaços com a chegada do meu filho. E eu quis passar para a peça um pouco dessa desordem que o puerpério traz. No cenário, os objetos são todos suspensos, como se a casa estivesse de pernas para o ar. E a segunda referência são as imagens de Rineke Dijkstra, que retratou mães que acabaram de parir vestindo apenas roupa de baixo e segurando os filhos no colo. Essas fotos transmitem força e ao mesmo tempo fragilidade. Eu queria que a encenação trouxesse esse elemento cru”, comenta.

Siga a peça no Instagram: @filha_mae_

Livia Piccolo – Dramaturgia e direção

Formada em Artes Cênicas na ECA/USP (2009), desenvolveu pesquisa de mestrado na mesma instituição cruzando performance vocal, teatro e música contemporânea. Atualmente transita pela escrita, direção e docência. Como atriz e performer participou de diferentes trabalhos, destacando-se as peças E Agora, Nora?! da Cia. Temporária de Investigação Cênica, Ana Não Está, com direção de Gilberto Gawronski e as performances sonoras Vozes em Trânsito e Sobre Lábios e Línguas, com o coletivo L.I.V.E. (Laboratório de Investigação Vocal e Experimentação). Também trabalha como roteirista nos vídeos da editora Antofágica e tem textos publicados em diferentes revistas virtuais.

Joana Dória

Atriz, encenadora, performer e professora de teatro. É mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP, com orientação de Antônio Araújo (2018). Além do Brasil, realizou trabalhos na Alemanha e na Itália. Formada no Teatro – Escola Célia Helena (2004), no bacharelado em direção teatral ECA/USP (2008), e na Pós Graduação Lato Sensu em Direção Teatral da Escola Superior de Artes Célia Helena (2013). Entre os principais trabalhos como atriz estão as peças Ato a quatro, direção de Bruno Perillo, Espelho, direção de Antônio Januzelli e Alice Através do Espelho, direção de Rubens Velloso.

Serviço

  • A FILHA DA MÃE – Estreia dia 1º de junho no Viga Espaço Cênico – Sala Piscina.
  • Duração: 60 minutos. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$30 (inteira); R$15 (meia-entrada); R$6 (credencial plena). Temporada: de 1º a 30 de junho. Sábados às 21h e domingos, às 19h.
  • Viga Espaço Cênico – Rua Capote Valente, 1323.
  • Capacidade teatro: 35 lugares. Informações: (11) 3801 1843.

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