Vítima de violência doméstica chama polícia e apanha de PMs
Sem medida protetiva, vítima mudou de cidade, no interior de SP, após dupla agressão; “violência policial pode inibir mulheres a pedir ajuda”, afirma advogado
Imagine a situação. Você, mulher, sofre violência doméstica. Seu irmão é seu agressor. Com medo de perder a vida, você aciona a Polícia Militar. Mas, quando a força policial chega, você sofre outra agressão. Dessa vez, quem te agride é o PM que você chamou para te proteger.
Isso aconteceu com uma jovem moradora de Presidente Prudente, município a 554 km da cidade de São Paulo, na noite de 23 de março, logo no início do isolamento social para contenção da pandemia do coronavírus.
Nesse primeiro mês, segundo estudo do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, a violência doméstica aumentou 29% no estado. No mesmo período, as prisões em flagrante por descumprimento de medida protetiva cresceram 51%.
Um vídeo divulgado nesta semana mostra o momento em que a vítima conversa com um policial militar. O motivo das agressões do PM teria sido a forma com que a jovem questionou o policial: “não fazer o B.O.? Não vou levar meu irmão?”. Como resposta, ela recebeu cacetadas.
Também é possível ver o momento em que a jovem é colocada na parte de trás da viatura, onde foi levada para a delegacia, de pijama, descalça e sem documentos.
Não foi a primeira vez que a jovem chamou a polícia para denunciar a violência doméstica que ela e sua mãe sofrem com frequência de seu irmão. A jovem está sendo acompanhada por duas advogadas que, assim como a vítima, preferem não se identificar ou conceder entrevistas por medo de retaliações.
A advogada Aline Escarelli, uma das representantes dos interesses da vítima do caso, relatou à Ponte que quando chegou na delegacia se deparou com o B.O. pronto. As informações escritas ali eram de desacato, não de violência doméstica, como ela esperava. Com isso, veio a recusa de assinar o documento e a exigência de abrir um registro correto: por violência doméstica e abuso policial.
Só no dia seguinte, na Delegacia da Mulher, a jovem conseguiu registrar a queixa de violência doméstica e contra os policiais. O boletim de ocorrência de abuso policial gerou um inquérito que corre na Polícia Civil de Presidente Prudente.
Posteriormente, as advogadas da vítima protocolaram uma queixa crime, solicitando proteção da vítima, enquadramento do PM por denunciação caluniosa e outros outros delitos, como prevaricação e cárcere privado.
“Ela fez exame de corpo de delito, que apontou as agressões. Depois do ocorrido, a jovem mudou de cidade. O inquérito de violência doméstica foi concluído, mas nenhuma medida protetiva foi concedida à vítima até agora”, explicou Escarelli.
A advogada define como “dupla violência” o que a vítima sofreu. “Temos a violência doméstica, intensificada pela pandemia, e temos a violência do Estado, que é o maior violador de direitos humanos”, pontuou.
“Ficou vidente, para nós, que continuamos com um sistema de Justiça que é violento, tanto na delegacia quanto na rede que, em regra, tinha que atender, acolher e ter uma escuta qualificada com essa vítima”, lamentou Escarelli.
Para o advogado Ariel de Castro, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), a ação mostrou um “total despreparo dos policiais”. “Ao invés de proporcionar proteção, ela foi revitimizada pelos PMs, o que inibe outras mulheres a chamarem a polícia em situação similares”.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública, por meio da assessoria terceirizada InPress, e a assessoria da Polícia Militar para questionar a ação dos PMs.
Em nota, a pasta informou que o crime está sendo investigado por meio de inquérito policial, pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Presidente Prudente – relatada ao Poder Judiciário neste mês. “Já o desacato e o possível abuso de autoridade são investigados pela Central de Polícia Judiciária (CPJ) do município e também pela Polícia Militar, que instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para apuração dos fatos. As diligências prosseguem”, diz a nota.
A Ponte também consultou o Tribunal de Justiça de SP para entender por qual motivo a medida protetiva ainda não foi dada e aguardamos uma resposta.
Por Caê Vasconcelos – Repórter da Ponte