Após colapso na saúde, amazonenses parecem não ter medo de nova onda
No último domingo (04), viralizaram na internet vídeos e posts de uma mega-festa realizada em um condomínio de luxo da Avenida Ephigênio Salles, na zona centro-sul de Manaus. Um dia depois, outras imagens começaram a circular nas redes sociais denunciando um cruzeiro com aproximadamente 60 turistas brasileiros e estrangeiros. Na terça-feira (06), a Polícia Civil interceptou três embarcações de luxo que faziam esses passeios, imediatamente considerados clandestinos. Havia cinco dias, os turistas navegavam tranquilamente e felizes pelo rio Amazonas.
Em períodos normais, festas ou passeios de barco fazem parte da paisagem da Amazônia. Nesta pandemia, esses atos de aglomeração simbolizam a violação às medidas sanitárias para conter o novo coronavírus e um desrespeito às quase 350 mil mortes de Covid-19. Mas traduzem também a postura do governo do Amazonas e, em particular, da prefeitura de Manaus, que já nos primeiros sinais de queda no número de internações e mortes no estado decidiram flexibilizar o isolamento social, apesar dos alertas de que nada está controlado.
A cada fim de semana, o telefone 190 da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas recebe uma média de 600 denúncias de festas clandestinas. As informações são encaminhadas às viaturas da Polícia Militar para verificação das ocorrências – a maioria em Manaus.
A festança clandestina do condomínio da Avenida Ephigênio Salles gerou imediata reação nas redes sociais. “Um dia desses estava todo mundo morrendo sem oxigênio. Agora já está desse jeito? Ninguém aprende nem se tiver uma terceira onda”, protestou o internauta Marcos Dias. “Oh coisa linda… Vamos aguardar os próximos episódios do povo fazendo vaquinha para pagar hospital particular”, ironizou Silvio Carlos. “Uma verdadeira vergonha. Falta de empatia”, resumiu Jussara Menezes.
Mesmo sob protestos, esse episódio corre o risco de ficar por isso mesmo. A Polícia Civil, provocada, limitou-se a dizer que investiga a denúncia que estaria relacionada a “um dos” condomínios de luxo localizados na Avenida Ephigênio Salles: Residencial Ephygenio Salles, Greenwood Park, Jardim Vila Rica e Bosque Imperial
Diferente dos turistas do “cruzeiro macabro” que foram encaminhados para a Central de Flagrantes da Delegacia Geral (DG), onde assinaram um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e vão responder pelo descumprimento de medidas sanitárias, de acordo com o artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa”.
“Boa parte deles (passageiros) é estrangeira, e vieram provavelmente para conhecer a Amazônia, mas em um contexto muito triste. Estamos batalhando, vidas estão sendo perdidas, a polícia está na rua para coibir esse tipo de coisa para que a gente passe rapidamente pela pandemia. Mas, infelizmente, algumas pessoas insistem em desobedecer”, afirmou o diretor do Departamento de Repressão ao Crime Organizado (DRCO), Bruno Fraga.
A excursão Amazon Immersion, cujo panfleto é todo em inglês, levava os 60 turistas para visitas a comunidades tradicionais indígenas e ribeirinhas. O grupo estava a bordo do iate Anna Beatriz 1. Acompanhavam o comboio as embarcações Hélio Gabriel e Mano Zeca, que não levavam passageiros.
O iate Anna Beatriz 1 tem 19 suítes – sendo uma master com cama de casal e TV de plasma -, e três decks, restaurante, cozinha, sala de jogos, bar e área de entretenimento e lazer com piscina. Na parte de segurança, a embarcação tem dois grupos geradores e uma radar de bordo, GPS e rádio UHF/VHF. O custo cobrando por passageiro no cruzeiro, segundo a polícia, foi entre R$ 6,1 mil a R$ 11,7 mil.
“Constatamos estrangeiros das mais diversas nacionalidades, brasileiros também, pessoas de diversos cantos do país, de alto poder aquisitivo, com acesso à informação. Eles estão desde o dia 2 de abril navegando e passaram por comunidades indígenas. Nós vemos muitos estrangeiros falando sobre a nova cepa aqui no Amazonas, está todo mundo criticando, quando na verdade nós sabemos da fragilidade dos nossos índios em contato com pessoas de fora, principalmente em uma situação dessas”, destacou o delegado Juan Valério.
O fim do isolamento
Até o dia 19 março, a plataforma Inloco (que teve seu serviço descontinuado em 23 de março), mostrou que o Amazonas chegou a um índice de isolamento social de no máximo 40%, bem longe dos 60% registrados no mês anterior; continua caindo. Especialistas veem com preocupação essa postura de decretar, por conta própria, uma volta à normalidade. Mas ela se justifica a partir das orientações dadas pelos poderes estadual e municipais.
O afrouxamento das medidas restritivas no Amazonas teve início a partir de 22 de fevereiro, depois da explosão de casos da segunda onda, que culminou com a crise da falta de oxigênio no Estado, em meados de janeiro, que levou pessoas à morte por asfixia. Bastou que o lockdown parcial implementado pelo governo estadual ajudasse a reduzir o ritmo de contaminação, para as autoridades públicas iniciarem a flexibilização.
O epidemiologista do Instituto Leônidas e Maria Deane, a Fiocruz Amazônia, Jesem Orellana, aponta que a redução no número de casos, alcançada graças às medidas mais restritivas adotada pelo Amazonas, já mostra um recrudescimento. “Neste momento, Manaus já apresenta sinais de reversão da queda [de casos], ou seja, pode ser que nos próximos dias, nas próximas semanas, a incidência de Síndrome Respiratória Aguda Grave, portanto de Covid-19, volte a aumentar, mas não sabemos em que velocidade isso vai acontecer, e nem quanto tempo isso vai demorar para de fato se concretizar”, prevê.
Uma das principais vozes de alerta para a gravidade da pandemia no Amazonas, o pesquisador Orellana lembra que a desaceleração no número de casos vinha muito rápida entre janeiro e fevereiro, e que as flexibilizações promovidas pelo governo do Estado acabaram por jogar todo o esforço para a contenção do vírus.
Cedo para flexibilizar
O infectologista Nelson Barbosa também avalia que foi cedo demais para o governo adotar as medidas de relaxamento. “Até porque, como os próprios estudos científicos mostraram, esse vírus faz uma mutação muito rápida. Então, provavelmente, já tem outras mutações do coronavírus e aí o que que pode acontecer? Já que a população do Amazonas só foi vacinada em 9,7%, o risco é muito grande de haver uma terceira onda”, alerta o especialista.
De forma geral, os pesquisadores apontam que o isolamento social ainda é a forma mais eficaz de conter a circulação viral, principalmente por causa do ritmo lento da vacinação no Estado. “Isso [ritmo lento da vacinação] é um reflexo das medidas desastrosas implementadas pelos ministros da saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro. O lobby contra a vacina causou condições para que hoje nós vacinamos muito menos do que de fato precisaríamos”, aponta o doutorando de biologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Lucas Ferrante, que já fez o alerta de uma possível terceira onda.
O ritmo de vacinação em Manaus, de acordo com Ferrante, ainda é tão pequeno que não é capaz de interferir nas dinâmicas epidemiológicas e propagação do vírus. Até a quinta-feira (8), pouco mais de 607.582 doses de vacinas haviam sido aplicadas em todo o Amazonas, sendo 463.411 na primeira dose e 144.171 na segunda dose.
“Precisamos adotar medidas mais restritivas para impedir este aumento de casos. Nós precisamos deter isso, principalmente, neste cenário catastrófico que o Brasil vive, onde com o maior número de internações, um novo colapso do sistema de saúde de Manaus seria extremamente preocupante, pois a cidade estaria desabastecida de suprimentos médicos básicos, uma vez que essa demanda aumentou para todo o País”, alerta Ferrante.
Em todo o território nacional, a Covid-19 já fez 345.025 vítimas até esta quinta-feira (8). Já no Amazonas, o Ministério da Saúde informa que no último ano, mais de 11 mil óbitos foram registrados no estado. Veja o infográfico abaixo:
Os dados do infográfico são do SRAG 2021 – Banco de Dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave – incluindo dados da COVID-19 atualizados até 28/03/2021. Na nova atualização, publicada em 05/04/2021, a reportagem da Amazônia Real encontrou uma diminuição de 1.335 mortes. Até o fechamento desta matéria, o Ministério da Saúde não explicou a ausência de quase 11% das mortes registradas especialmente no mês de janeiro/21, no estado do Amazonas. A agência aguarda uma resposta do governo federal.
Atividades paralisadas
Apesar da aparente normalidade, o comércio manauara ainda sente os efeitos da segunda onda de uma forma acentuada. A Câmara de Dirigentes de Lojistas de Manaus (CDL Manaus) estima uma queda de pelo menos 40% no faturamento. “Estamos levantando no mês de abril quantas lojas estão fechadas e não vão abrir. Em abril, vamos verificar qual foi o volume de empregos perdidos”, anuncia o presidente da CDL Manaus, Ralph Assayag.
O Estado do Amazonas está na chamada fase laranja – que corresponde à classificação de risco moderado para a transmissão da Covid-19 -, de acordo com a Matriz de Risco, que segue o padrão de cores e níveis de riscos do documento do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM).
Nesta fase, explica Assayag, ainda há restrições de horários nos funcionamentos dos estabelecimentos comerciais. “Os shoppings têm perdido em torno de seis horas de abertura por dia, e aos domingos também que não abre. Os restaurantes noturnos estão fechados. Então, ainda tem muita coisa para acontecer para que a gente possa fazer o levantamento final em relação à perda de faturamento e o impacto da segunda onda da Covid-19 na economia do Estado”, ressalta o dirigente.
O lojista Eduardo Silva, de 49 anos e que há 19 trabalha como vendedor de eletroeletrônicos no centro de Manaus, estima que a atividade caiu “pelo menos uns 80%”. Para ele, a falta do auxílio emergencial nos três primeiros meses do ano foi decisiva para a retenção do comércio. “Era o que estava ajudando a manter o comércio vivo”, disse.
Por que se isolar
No icônico mercado municipal Adolpho Lisboa, um dos cartões postais de Manaus, Florentino Barbosa da Silva, de 65 anos – “e sete meses”, como ele faz questão de ressaltar – tenta retomar à vida normal depois de quase perder a luta contra a Covid-19. “Eu estive no bico do urubu e voltei”, brincou o comerciante que vende artesanatos, bolsas e chapéus.
Ao todo foram 33 dias internado no Hospital Pronto-Socorro 28 de agosto. A internação aconteceu no dia 14 de novembro de 2020. “Usei até fralda e fiquei sem andar”, recordou. Florentino afirmou que não morreu graças a um dos médicos que lutou para que ele não fosse intubado. Com dificuldade para “lembrar das coisas”, ele lamenta não se lembrar de quem o salvou.
“Queriam me intubar, mas esse médico disse que não. Ele me levou para a UTI, mas não fui intubado. Todos os dias ele ia lá comigo. Ele foi uma pessoa incrível. Todos ali no 28 de agosto”, disse.
Após receber a alta, Florentino conta que se sente como se tivesse nascido de novo. Sobre o movimento no mercadão? Ele diz que está na casa dos 3%, mas, apesar das dificuldades, sabe que tem o que comemorar: a vida nova e a primeira dose da vacina já recebida. Para aqueles que acham que o novo coronavírus é brincadeira, o comerciante tem um recado: “Se você nunca teve Covid, nem pense em ter. É uma coisa muito perigosa. Tenham cuidado. Usem máscara que essa é a coisa certa”.
Investigações sobre festas em iates de luxo
A reportagem da Amazônia Real questionou com a Polícia Civil a nacionalidade dos participantes do evento “Imersão na Amazônia”, bem como a empresa que organizou a festa nos iates de luxo, e quem seria o proprietário das embarcações. O órgão não respondeu aos questionamentos.
A agência também procurou a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) para saber o número de autuações das polícias em festas clandestinas nesta pandemia. Segundo o órgão, entre os meses de setembro de 2020 e abril de 2021, 46 festas clandestinas foram registradas no Amazonas, sendo 40 em Manaus e seis em cidades do interior do estado, respectivamente: Manacapuru, Iranduba, Coari, Benjamin Constant, Tonantins e Novo Airão.
Durante os flagrantes nas festas clandestinas, 494 pessoas foram presas por acusação de desrespeitar as medidas sanitárias para prevenir a proliferação do novo coronavírus. Mas o número de presos foi menor, pois essas festas, segundo SSP-AM, contaram com as participações de ao menos 20 mil pessoas. A secretaria disse que, em Manaus, a maioria das festas aconteceu em bairros nobres, como o Tarumã, na zona oeste da capital.
Sobre a festa no condomínio de luxo da Avenida Ephigênio Salles, no bairro Aleixo, a Delegacia Geral da Polícia Civil informou à Amazônia Real uma investigação está em curso no 16º Distrito de Polícia. No entanto, no condomínio de luxo ninguém foi preso por fazer aglomerações durante a maior crise sanitária no mundo.
- Movimento na Feira da Manaus Moderna, no centro de Manaus ( Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
- Movimento na Feira da Manaus Moderna, no centro de Manaus ( Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Por Leanderson Lima, da Amazônia Real