À CPI, Ernesto Araújo tenta reescrever atuação no Ministério de Relações Exteriores
Em depoimento à CPI da Pandemia no Senado nesta terça-feira (18/05), o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo tentou pintar um retrato moderado da sua gestão à frente da pasta, negando que tenha protagonizado atritos com a China e implementado um alinhamento sem ressalvas com o governo do ex-presidente Donald Trump. Ele também afirmou que teria favorecido o multilateralismo e tentou se distanciar do ideólogo de extrema direita Olavo de Carvalho.
Aos senadores, o ex-ministro ainda tentou transferir a culpa pela escassez de vacinas contra a covid-19 exclusivamente ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, poupando o presidente Jair Bolsonaro. Por outro lado, ele admitiu a atuação do Itamaraty na obtenção da cloroquina, droga que é promovida pelo governo Bolsonaro, mesmo sem evidências científicas sobre eventuais efeitos positivos contra a covid-19.
O contraste entre as ações de Araújo nos tempos de Itamaraty e seu posicionamento moderado na CPI levaram vários senadores a acusarem o ex-ministro de mentir.
Araújo assumiu o Itamaraty no início da gestão Jair Bolsonaro e permaneceu no cargo até 29 de marçodeste ano. Próximo do filho “03” do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, Araújo foi um dos principais expoentes da chamada “ala ideológica” do governo, ligada a movimentos ultraconservadores e de extrema direita.
Em seus pouco mais de dois anos de gestão, Araújo implantou uma agenda “antiglobalista”, que isolou o país. Adepto de teorias conspiratórias, ele ainda transformou o ministério num palco de palestras para blogueiros propagadores de fake news. Em outubro de 2020, Araújo chegou a afirmar que, se a atual política externa do Brasil “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. Sua situação no governo ficou insustentável depois que Senado, Câmara dos Deputados, generais, grandes empresários e lideranças do agronegócio se uniram para tirá-lo da Esplanada.
China
Mas, aos senadores, Araújo renegou ou tentou minimizar muitas das suas posições mais incendiárias. Ele afirmou, por exemplo, que o Brasil mantém uma relação “madura e construtiva” com a China e que nunca adotou uma postura ofensiva ao país asiático.
“Jamais promovi nenhum atrito com a China, seja antes ou durante a pandemia”, disse. “Não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito como antichinesa. Não houve nenhuma que se possa qualificar como antichinesa. Não houve impacto”, completou.
A China é no momento o principal fornecedor de vacinas e insumos para o Brasil. Analistas e políticos da oposição consideram que a política de confronto do governo Bolsonaro contra os chineses pode estar levando Pequim a atrasar o envio de doses para o país sul-americano.
Em abril do ano passado, Araújo publicou um texto em seu blog em que afirmava que o coronavírus seria, na verdade, parte de um plano comunista para conquistar o mundo. Na ocasião, ele descreveu esse plano como “comunavírus”, que seria uma conspiração “comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado”.
Nesta terça-feira, ele afirmou que a expressão “comunavírus” não tinha relação com o coronavírus e que ele não a considerava ofensiva. Mesmo argumentando que não houve atritos com a China, Araújo confirmou aos senadores que mandou uma queixa a Pequim sobre a atuação do embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, que reagiu aos ataques de Eduardo Bolsonaro e do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub. Recentemente, o próprio presidente Bolsonaro lançou ataques à China, sugerindo, sem provas, que os asiáticos criaram o vírus em laboratório como parte de uma “guerra química”.
Vacinas e Covax Facility
Araújo também pintou um retrato positivo da atuação do Itamaraty na aquisição de vacinas, tentando transferir problemas na área ao Ministério da Saúde sob a gestão Pazuello. No entanto, várias das afirmações de Araújo foram desmentidas imediatamente pelos senadores.
Araújo, por exemplo, afirmou que não foi contra a adesão do Brasil ao consórcio Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde (OMS), para a distribuição de vacinas. Segundo Araújo, o Itamaraty “esteve sempre atento” à iniciativa. Mas o senador Otto Allencar imediatamente apontou que o Itamaraty nem sequer mandou representantes para as duas primeiras reuniões do consórcio, que ocorreram em abril e maio de 2020.
O governo só acabou formalizando sua adesão ao consórcio em setembro do ano passado, e optou apenas por adquirir a compra mínima prevista pelo mecanismo, equivalente a 10% da população brasileira, quando havia a opção para solicitar até 50% de cobertura. Questionado por que o governo Bolsonaro só optou pela cobertura mínima, Araújo disse: “Essa decisão não foi minha. Foi do Ministério da Saúde.”
“O ministro faltou com a verdade, não falou aquilo que realmente aconteceu”, disse o senador Alencar sobre as declarações de Araújo sobre o consórcio.
Araújo também afirmou que “o Brasil foi o primeiro país que recebeu vacinas exportadas pela Índia”, o que, segundo ele, atestaria uma diplomacia eficiente da pasta. No entanto, antes de enviar 2 milhões de doses para o Brasil numa operação marcada por atrasos e uma campanha fracassada de propaganda do governo Bolsonaro, os indianos exportaram doses para o Butão, Maldivas, Bangladesh, Nepal, Mianmar e o arquipélago de Seicheles.
O ex-ministro ainda afirmou que teve conhecimento da carta enviada pelo CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, ao governo brasileiro em setembro do ano passado, perguntando se o país teria interesse em comprar a vacina da empresa. O documento ficou dois meses sem resposta.
Araújo disse que “talvez” tenha tomado conhecimento da carta em 14 de setembro, dois dias depois de ela ser enviada, mas que caberia ao Ministério da Saúde definir de forma centralizada a estratégia de vacinação. Ele também disse não saber por que houve demora na resposta do governo.
Ele disse também que nas reuniões ministeriais dais quais participou a compra de vacinas para não foi discutida especificamente. Houve apenas uma exceção, segundo o ex-ministro, em fevereiro ou março deste ano, quando se teria debatido um contato com a Pfizer.
Cloroquina
À CPI, Araújo confirmou que o Itamaraty atuou para obter cloroquina no mercado internacional. A droga sem eficácia comprovada contra a covid-19 vem sendo promovida por Bolsonaro como um tratamento contra a doença desde março de 2020, mesmo com estudos descartando efeitos benéficos.
“Em março, havia expectativa de que houvesse eficácia no uso da cloroquina para tratamento da covid, não só no Brasil, mas no mundo. Isso baixou precipitadamente o estoque de cloroquina e fomos informados sobre isso pelo Ministério da Saúde. A pedido do Ministério da Saúde buscamos facilitar a importação de insumos para a produção de cloroquina”, disse.
Apesar de afirmar que o envolvimento do Itamaraty na importação de cloroquina ocorreu a pedido do Ministério da Saúde, ele também reconheceu que houve participação de Bolsonaro no assunto. Depois da resposta sobre o papel do Ministério da Saúde, o relator da CPI, Renan Calheiros, questionou Araújo se o tema havia sido discutido com outros membros do governo.
“Não foi exatamente um pedido para implementar esse pedido do Ministério da Saúde, mas o presidente da República, em determinado momento, pediu que o Itamaraty viabilizasse um telefonema dele com o primeiro-ministro [da Índia]”, disse o ex-ministro.
Outras posições
Aos senadores, Araújo também tentou minimizar outras marcas da sua gestão, como o alinhamento com o governo Trump. “Não houve um alinhamento com os EUA, houve uma aproximação a partir de um distanciamento que ocorreu anteriormente. Jamais entramos em qualquer iniciativa que fosse apenas de interesse americano”, disse.
O Brasil foi um dos últimos países do mundo a reconhecer a vitória do democrata Joe Biden sobre Trump nas eleições de novembro de 2020, e o presidente Bolsonaro chegou até mesmo a insinuar que o republicano havia sido vítima de fraude eleitoral. Em janeiro de 2021, Araújo disse que a turba de extremistas que invadiu o Capitólio, nos EUA, seria formada por “cidadãos de bem”.
O ex-ministro ainda tentou se distanciar do ideólogo de extrema direita Olavo de Carvalho, considerado mentor de figuras como Eduardo Bolsonaro, o assessor especial do presidente para Assuntos Internacionais Filipe G. Martins, o ex-ministro Weintraub e o próprio Araújo. Questionado por Renan Calheiros se Olavo fazia um aconselhamento paralelo na condução da política externa, Araújo negou e minimizou a influência do ideólogo.
“Não tenho conhecimento da existência de nenhum mecanismo desse tipo nem de influência do professor Olavo de Carvalho”, disse Araújo, acrescentando que não considera Olavo seu “guru”. Em setembro passado, no entanto, Araújo afirmou que as obras de Olavo de Carvalho “inspiram e contribuem” para formulação de “políticas e tomadas de decisão”.
Por fim, Araújo ainda afirmou que “o tema ambiental se tornou uma prioridade” sob sua gestão e que nunca foi contra o multilateralismo.
Críticas
Durante a sessão, a senadora Kátia Abreu fez uma dura fala contra Araújo. Sem fazer perguntas, ela ironizou as posições supostamente moderadas que Araújo apresentou à CPI, afirmando que ele tem duas “personalidades”.
“O senhor é um negacionista compulsivo, omisso. O senhor, no Ministério das Relações Exteriores, foi uma bússola que nos direcionou para o caos, para um iceberg, para um naufrágio. Bússola que nos levou para o naufrágio da política internacional, da política externa brasileira, foi isso que o senhor fez. Isso é voz unânime dos seus colegas no mundo inteiro“, afirmou Abreu.
“A impressão que se tem é que existe um Ernesto que fala conosco e ouvimos a voz, e um outro Ernesto, que eu não sei onde fica, nas redes, na internet, nos artigos, nos blogs, falando coisas totalmente diferentes. Eu sinceramente estou confusa sobre qual personalidade nós devemos considerar”, completou. Em janeiro, Abreu já havia protagonizado um embate com Araújo no Senado e chamado o ex-ministro de “marginal” após o diplomata acusá-la de agir como lobista dos chineses na instalação do 5G no Brasil.
O presidente da CPI, Omar Aziz, também se irritou com as falas de Araújo sobre a China, que pintaram um falso retrato de relações amistosas entre os dois países. “Quero alertá-lo que o senhor está sob juramento de falar a verdade. Vossa excelência está faltando com a verdade. Peço que não faça isso”, disse Aziz.
Já o senador Otto Alencar lembrou do episódio em que Araújo participou de uma confraternização comandada por Bolsonaro em uma churrascaria na qual o presidente distribuiu ataques grosseiros à imprensa. “Eu fiquei preocupado de o senhor quebrar a mão de tanto que aplaudiu as agressões do presidente à imprensa”, disse Alencar.
A senadora Mara Gabrilli, por sua vez, criticou a gestão de Araújo à frente do Itamaraty. “O senhor rasgou a diplomacia mais básica”, disse.
Por Deutsche Welle
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